
Em sequência à série de observações sobre os cuidados – e perigos – a serem seriamente considerados a respeito do ambiente digital e, a partir de agora, cada vez mais quanto à chamada inteligência artificial, um novo artigo se encaixa oportunamente na discussão.
O texto é assinado por Marcelo Senise, presidente do Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial (Iria), sócio fundador da Social Play e CEO da Conect I.A, além de sociólogo e “marqueteiro”.
Aponta o especialista: “Há alguns meses, participei de um grupo de discussão composto por estrategistas e profissionais de marketing político de altíssimo nível.
Em meio a temas já familiares — como neuromarketing, construção de imagem e controle narrativo —, foi exibido um vídeo que imediatamente capturou minha atenção. Ele falava sobre a Janela de Overton.
Por mais que esse conceito já estivesse presente no meu radar teórico, foi a primeira vez que vi, naquele meio técnico e influente, alguém trazer essa ferramenta para o centro do debate. E mais do que isso: tratá-la não como uma curiosidade acadêmica, mas como parte integrante de estratégias reais, aplicadas, muitas vezes deliberadamente.
Isso me causou um impacto imediato — não apenas pelo conteúdo em si, mas porque percebi o quanto se fala pouco sobre os mecanismos de persuasão que ultrapassam os limites éticos e caminham para o terreno da manipulação social. Esse momento foi o gatilho que me impeliu a escrever sobre o assunto, e que culminou na produção do meu novo livro.
A Janela de Overton é uma teoria que descreve como uma ideia que inicialmente soa absurda ou inaceitável pode, através de um processo gradual de exposição, debate e reformulação, tornar-se perfeitamente aceitável — até mesmo desejável — aos olhos da opinião pública.
A estratégia é eficaz porque não confronta a sociedade diretamente, mas desloca, com precisão cirúrgica, o eixo do debate até que o ‘novo normal’ seja assimilado sem resistência.
O que ontem parecia inconcebível, hoje parece razoável; amanhã será defendido com fervor. E tudo isso acontece sob a ilusão de que escolhemos pensar dessa forma por conta própria.
No passado, essas transformações ocorriam de maneira mais lenta, quase orgânica, mediadas por instituições tradicionais como a imprensa, a educação e a cultura. Mas hoje, com a ascensão das redes sociais e da comunicação digital, essa engenharia da opinião tornou-se exponencialmente mais veloz e mais eficaz.
Algoritmos organizam os fluxos de informação de forma a maximizar engajamento, não reflexão. O que nos chega não é o que precisamos saber, mas o que somos mais propensos a aceitar, curtir e compartilhar. A bolha se fecha, a dissonância cognitiva é neutralizada, e a manipulação se disfarça de consenso.
Não há neutralidade no que é mostrado ou ocultado. Vivemos dentro de ambientes digitais que reforçam crenças, filtram ideias divergentes e premiam posturas extremadas, tudo sob o rótulo sedutor da liberdade de expressão.
Mas a liberdade sem consciência é terreno fértil para a servidão intelectual. As redes sociais, hoje, são usinas de modelagem comportamental. O que viraliza raramente é o que tem profundidade; é o que provoca, polariza ou emociona.
A retórica vence a razão. O espetáculo substitui o argumento. A construção de identidade se sobrepõe à busca pela verdade.
Foi diante desse cenário que resolvi escrever ‘A Delicada (ou não) Arte da Desconstrução Política’. O livro é uma resposta — e um alerta. Nele, investigo as engrenagens por trás da transformação das ideias, a manipulação estratégica de símbolos, a linguagem como ferramenta de controle e a forma como causas legítimas podem ser instrumentalizadas para fins de poder.
Mais do que denunciar, proponho um caminho para a lucidez. Porque acredito que quem compreende os instrumentos de manipulação deixa de ser vítima passiva do discurso dominante e passa a ser agente crítico do próprio tempo.
Meu objetivo não é fomentar teorias conspiratórias nem alimentar cinismo. Ao contrário: é convocar à vigilância. Porque a verdadeira liberdade exige mais do que direito de falar — exige a capacidade de pensar. E isso, em tempos de hiperinformação e distração constante, é um ato de resistência.
O livro será lançado em breve. Será mais do que uma obra: será um convite a reabrir os olhos e a repensar as estruturas que moldam, todos os dias, aquilo que chamamos de ‘nossa’ opinião”.
Seria redundante acentuar pontos tão claros notados pelo especialista, mas ao menos vale reconhecer, pelos argumentos expostos, com identificação do processo de manipulação, a razão pela qual, por exemplo, indivíduos que se entendem como “de família”, ao mesmo tempo, relativizarem discursos e ações diametralmente opostas a esse conceito.
Ou seja, família deveria seguir – como antes – indicando afeto, harmonia, tolerância, não agressão, preconceito e até discursos de ódio, senão planos de assassinato…
Na verdade, a inconsciência tomou conta de quem desistiu de pensar por si mesmo e, sobretudo, deixou de valorizar a verdade, entregando-se, tal objetos sem autonomia, à manipulação de oportunistas – entre outros piores “istas”.
Ainda é tempo de combater o mal uso da manipulação artificial com a “inteligência humana”. Resta saber se ainda há suficiente inteligência e, claro, “humanidade” para tanto.