Malditos músicos





Nos últimos dois anos e meio, depois que passei a ter sala própria no trabalho, a cena passou a acontecer ao menos uma vez por semana. Eu trabalhava em minha mesa, afogado nos números de uma planilha rebelde que teimava em não bater, e subitamente era arrancado da concentração pelo potente som de um trombone ou trompete logo abaixo da janela. Nunca era nada complicado; em geral apenas uma simples escala, indo de uma nota bem aguda para uma bem grave, ou vice-versa – e geralmente desafinada.

Um aluno. Terminada a escala, ele começava tudo de novo; em seguida, de novo; e após escutar pela vigésima vez a mesma curta sequência de notas, os números já haviam fugido de minha mente, assustados feito ratos abandonando o navio. A essa altura, com o trabalho ameaçando naufragar e a pressão sanguínea a 22 por 16, não me restava alternativa exceto ir lá fora solicitar ao garoto, com a gentileza recomendada pela educação de berço (e também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), que fosse estudar em outro lugar.

Mas, de fato, incidentes desse tipo foram um dos poucos incômodos sonoros de trabalhar em um lugar onde se respira música, como o Conservatório de Tatuí. No mais das vezes, tinha o privilégio de trabalhar tendo como trilha sonora elaboradas peças ao piano, ensinado no andar acima do meu, ou animados ensaios do grupo de jazz ou de uma banda de alunos, no vizinho Salão Villa-Lobos. Isso, sem falar das raras e preciosas oportunidades que tive, de ajudar na própria concepção de espetáculos musicais, como os lotados concertos de Beatles do Coro Sinfônico e o da Big Band tendo Elis Regina como tema.

Sempre gostei de conviver com gente de formação e ofício diferentes do meu, e desse ponto de vista, trabalhar – ainda que não diretamente – com músicos foi uma experiência única, pois eles tendem a ter, além da sensibilidade típica do artista, uma visão bastante pragmática e informal das relações profissionais – esta última em boa parte devido ao desrespeito com que a profissão sempre foi tratada. Por esse motivo, organizar e formalizar em termos claros e tão justos quanto possível a relação músico-instituição foi um dos trabalhos mais difíceis, importantes e recompensadores de que participei no Conservatório.

Não quero entrar em detalhes frios de trabalho, mas tenho algo a dizer a esses malditos músicos, professores ou não, instrumentistas ou cantores. Esses antipáticos que leem partituras com a mesma facilidade com que leio jornal; esses metidos que entendem de contraponto, harmonia e outras ciências ocultas; esses presunçosos que além de tudo tocam e cantam muito bem. Esses sabichões que me permitiram fazer perguntas tolas e comentários de leigo, ouvidos com bastante atenção e esclarecidos com não menor paciência e precisão.

Quero dizer a esses bocós de mola, que têm a mesma profissão da grande maioria de meus ídolos, um sincero “muito obrigado”; pois mesmo sem aprender música, aprendi muito. E que Deus os abençoe.