‘Machão’, a pancadaria (ainda) não está liberada

Como se não bastassem os desafios impostos pela pandemia, pela crise econômica e, agora, até pela dengue, a escalada de uma aparente opção de vida pela violência não dá trégua, ganhando mais simpatizantes antipáticos e elevando a curva de determinados tipos de crimes.

Não por acaso, as maiores vítimas das agressões são os mais frágeis, mulheres e crianças, à mercê de covardes a fazer uso de suas superioridades de força física para externar, na verdade, suas fraquezas de caráter, autoestima e humanidade.

Bater em mulher e criança para “resolver problema” assenta-se perfeitamente ao perfil do cidadão que aplaude a banalização das armas de fogo em mãos de civis, defende “intervenções” com déspotas no poder e já não disfarça quanto à indiferença à morte prematura dos “outros”.

Mesmo sem a pancadaria (ainda) não ter sido liberada (o que esse pessoal do porrete tanto deseja), muitos já se sentem plenamente à vontade para descer o cacete – nos mais fracos, preferivelmente.

O aumento de ocorrências comprova o fenômeno involutivo, e as estatísticas não poupam Tatuí, também indicando a tomada de terreno pela barbárie.

Conforme noticiado pelo jornal O Progresso nesta quarta-feira, 10, as denúncias de violência doméstica bateram recorde entre os meses de janeiro e dezembro de 2020 na cidade.

Particularmente, o número de inquéritos instaurados por agressões contra mulheres subiu 23,7% na comparação com 2019, segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo.

No período, a Delegacia de Defesa da Mulher local instaurou 569 procedimentos por violência doméstica, frente a 460 no ano de 2019.

Esse volume representa média de 1,5 ocorrência de violência doméstica a cada 24 horas e é o maior desde 2014, quando a DDM instaurou 601 investigações por agressões contra mulheres.

O aumento nas ocorrências também é apontado pelos relatórios da Patrulha da Paz, programa especializado no atendimento e proteção de mulheres vítimas de violência, mantido pela Guarda Civil Municipal, em parceria com o Núcleo de Justiça Restaurativa, por meio de convênio com a prefeitura.

Conforme levantamento da GCM, nos 12 meses, houve aumento de 1,92% nos casos de agressão contra mulheres em relação ao mesmo período de 2019, passando de 52 para 53.

Já na comparação com os dados de 2018, o aumento chega a 130,43%. Na ocasião, a GCM atendeu 23 casos. Os números consideram apenas os atendimentos que geraram boletins de ocorrência.

O secretário da Segurança Pública e Mobilidade Urbana, coronel Miguel Ângelo de Campos, apontou o isolamento social (iniciado em março de 2020, como medida de prevenção à Covid-19) como um dos fatores que contribuíram para o aumento dos índices.

Certamente, também o isolamento social tem estimulado a incontinência animalesca, mas a política do extremismo, do conflito, tem influenciado em muito e de maneira generalizada as agressões.

Os “machões” do momento, sem dúvida, sentem-se mais seguros para agredir, inspirados – com evidente incentivo – nos que (sem qualquer punição até agora) buscam acabar com os direitos adquiridos pelos menos favorecidos após a redemocratização e, em particular, a partir da Constituição de 1988.

Também não por acaso, reputam à Carta Magana grande parte do mal deste país, como se a solução para todos os problemas não fossem garantias básicas de cidadania e humanidade, mas opressão, violência e arbitrariedade.

Por este aspecto, não importa se o golpe à cidadania e aos direitos humanos começa na forma de um murro na cara da esposa, um tapa na orelha do filho, uma sessão de tortura em um “esquerdista” ou um tiro na cabeça de um suposto ladrão…

(Aliás, ladrão pé de chinelo, claro, lembrando que a tão festejada operação Lava Jato, supostamente criada para prender peixe grande, já foi pro fundo do mar de lama da política nacional.)

Importa é que o princípio da violência se efetiva e avoluma. Tanto faz a agressão, portanto. Interessa aos novos caudilhos e seu rebanho de muares encabrestar o quanto mais gente possível.

Isto, por outro lado, também com o anseio de que muitos se mostrem indignados e arredios, para justificar-se mais ainda a porrada, seja dentro de casa, em praça pública, nas mais altas instâncias do poder ou em seus mais baixos porões.

O Brasil ainda não chegou lá – ou retornou, dado ser de uma época passada o saudosismo a inspirar o retrocesso civilizacional, sem liberdade, sem amplos direitos e justiça efetiva -, mas caminha acelerado nessa direção.

No momento, por exemplo, um ministro da “Justiça” já se utiliza da abjeta Lei de Segurança Nacional (da época da “intervenção militar”) para processar jornalistas e chargistas somente porque estes se dão ao direito ousado de ter opinião…

Não seria menos indisfarçada, quanto à motivação de insurgência, a banalização das armas de fogo, assim como a bajulação aos militares, das polícias (ainda) estaduais e das Forças Armadas – seja com volume de cargos inédito no governo federal, seja com a promessa 007, a da licença para matar.

Em meio a tanta involução, os primeiros a sofrer, como se vê, são os mais frágeis. E pode piorar: se a escalada reacionária seguir, a tal “pauta de costumes” tem chances de acabar se impondo e, assim, extinguindo os sistemas de proteção tão dificilmente alcançados ao longo das últimas décadas, como os conselhos tutelares e a Lei Maria da Penha.

Afinal, para essa gente (nada) boa, não custa nada “engajar-se” no resgate da “educação tradicional” à base da varinha de marmelo e na morte de mulheres pela “defesa da honra”?

Portanto, é esperar que esse (“ainda”) nunca chegue – embora, no momento, a nação siga caminhando para trás, deixando “à frente” quase 240 mil mortos pela Covid-19 e outros não menos numerosos incrédulos, alarmados e agredidos.