
Francisco Neto Pereira Pinto *
O entrelaçamento entre desejo dos pais e relações de gênero, a que alude o título deste artigo, pode ser visto quando o casal decide ter filhos. Ainda é muito comum que a preferência seja por um filho homem quando se trata da primeira gravidez, reservada a segunda gravidez para a filha mulher, que viria, neste caso, para formar um casal de filhos, correspondendo a uma fantasia muito comum entre pais.
Essa é uma herança da qual a família pequeno-burguesa contemporânea não tem conseguido se desfazer. No modelo aristocrático, em que casamento era negócio, e não sentimento, o que importava era o primeiro filho, se fosse homem, para ser o herdeiro dos negócios da família.
Hoje, mesmo quando as famílias se estruturam por laços afetivos, esse modelo de escolha de filiação permanece. Não é por acaso que a historiadora norte-americana Joan Scott já dizia que o gênero está no princípio e é estruturante dos modos de organização das relações humanas e, portanto, das relações de poder.
Essa ideia é ilustrada pelo conto “Você me queria?” que faz parte do livro “À Beira do Araguaia”. Eve, a primogênita do casal Ana e Pedro, a partir de um acontecimento escolar, aparentemente banal, é tomada pela dúvida quanto a se seus pais realmente a desejaram enquanto ainda estavam grávidos ou se, na verdade, teriam desejado um menino.
Ela interroga primeiramente a mãe, depois a avó paterna e, por fim, o próprio pai. O modo como a narrativa trata o assunto indica que a perplexidade de Eve interroga a própria sociedade contemporânea, deixando à mostra o núcleo patriarcal que estrutura e modula o nosso desejo que, pela sua natureza, é inconsciente bem como ainda ambivalente quando se trata do lugar da mulher neste nosso século 21.
Nesse sentido, faz bem em sempre lembrar do que dizia o psicanalista francês Jacques Lacan: o inconsciente é a política.
Um modo, portanto, de abordarmos a questão da igualdade entre os sexos é prestar atenção a como essa trama se tece no campo das fantasias parentais, onde uma verdadeira microfísica do poder se desenrola, como diria Michel Foucault.
A pergunta é: o que você, pai/mãe deseja: menina ou menino? Como explica o psiquiatra e psicanalista suíço Francois Ansermet, em seu livro “A Fabricação das Crianças – Uma Vertigem Tecnológica”, o desejo dos pais cria um lugar para a criança no mundo.
Se o desejo de um casal é por um filho homem como primogênito, que lugar restaria para a menina que vem nessa posição? Seria um acidente, um erro, um equívoco? Quando a expectativa dos pais se confirma, a menina viria como um suplemento, um a mais, fazendo par com o menino, para formar o casal de filhos.
Se assim for, a mulher somente adquire seu valor em relação ao homem, significando sempre como menos valia, como complemento. Por isso, e para finalizar, é importante que cada um, cada uma, se pergunte: qual o lugar no meu desejo para minha filha?
* Escritor e psicanalista. Doutor em Letras. É professor da Universidade Federal do Norte do Tocantins. Instagram: @francisconetopereirapinto