Sem dúvida, devem estar rindo adoidado os que torcem pelo fim da democracia no Brasil, a favor de uma “intervenção”. Pelo menos, a considerar-se que, quando a piada é tida como crime, já se configuram algumas das mais típicas e perversas características do totalitarismo: a intolerância às críticas, a censura e o mau humor.
Nesta semana, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, pediu à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República a abertura de inquérito para investigar a publicação de uma charge pelo jornalista Ricardo Noblat.
Na ilustração, assinada pelo cartunista Aroeira, há uma cruz vermelha, que remete a hospitais, cujas extremidades são pintadas com tinta preta, formando a suástica.
O presidente Jair Bolsonaro aparece ao lado da pintura com uma lata de tinta e um pincel na mão. Na imagem, pode-se ler as expressões “crime continuado” e “bora invadir outro?”
Conforme o ministro, o pedido da investigação se enquadra na “Lei de Segurança Nacional”, que “trata dos crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social”.
Ele ainda se sustenta no artigo 26, que prevê a pena de reclusão de um a quatro anos para quem “caluniar ou difamar” o presidente da República, do Senado, da Câmara ou do Supremo Tribunal Federal (STF). Mendonça também afirma que a charge faz uma “alusão da suástica nazista” a Bolsonaro.
Ocorre que a tal Lei de Segurança Nacional foi promulgada durante a ditadura militar, então invocada para perseguir políticos e incriminar ocupações de sem-terra. Apesar da origem em um regime de exceção, recentemente tem sido usada em investigações de ataques à democracia.
Assim, são pertinentes algumas ponderações, só para não deixar dúvidas quanto a critérios acerca de liberdade de expressão e crimes contra a honra – como calúnia, injúria e difamação -, segundo a interpretação constitucional do ministro da Justiça.
Mendonça, em desacordo às funções tradicionais do cargo (que antes servia apenas para defender interesses da República e não de integrantes do governo, o que seria de competência do Advocacia-Geral da União), antecipou-se na defesa do agora ex-colega da Educação, Abraham Weintraub, junto ao STF, por conta do inquérito das fake news.
Conforme o ministro, cabe pedir habeas corpus em favor do colega, porque chamar os ministros da corte mais importante do país de vagabundos, ladrões e pedir-lhes a prisão é… ok! Afinal, trata-se de liberdade de opinião e expressão.
No entanto, uma charge – uma sátira política na forma de imagem – sobre o presidente feito Hitler, aí não! Pera lá! Aí, já é “passar dos limites”!
Coisa tão “séria” que merece até pedido de investigação pelo Ministério da Justiça – e isto em meio a uma pandemia que mata mais de mil diariamente e, salvo melhor juízo, mereceria mais atenção que as críticas de humor…
Realmente, fica difícil entender porque uma piada é mais séria às autoridades maiores do país que outras coisas, aparentemente, tão mais importantes, a tal ponto de à sátira não ser garantida a mesma “liberdade” resguardada a quem busca, diária e sistematicamente, por fim à democracia no país, com o tão desejado fechamento do Congresso e a “prisão” dos ministros do STF.
Sim, a ditadura nazista matou milhões e, por esse aspecto, não se assemelha ao governo brasileiro, embora este estimule a população a não respeitar a quarentena, colocando-a em risco de morte, por consequência.
Nem por isto, contudo, a sátira deixe de merecer respeito, ou mesmo de ser oportuna, lembrando haver vários “apoiadores” do golpe de estado, prestigiados pelas autoridades federais, ostentando bandeiras nazistas da Ucrânia, indumentárias à moda Ku Klux Klan ou, ainda, um ex-ministro recriando célebre pronunciamento do nada saudoso ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbles, para anunciar os “novos rumos da cultura”…
Ou seja (aqui uma ironia), se nada assemelha-se ao nazismo, por que a implicância, não? E, sem ironia: por que, afinal, os dois pesos e duas medidas tão distintos?
A resposta é simples e não tem nenhuma graça. A princípio, porque o autoritarismo nunca governa para todos, por mais que sempre apele ao patriotismo. Na verdade, interpreta a nação – e o mundo – como um eterno cenário de guerra, constituído somente por “aliados” e “inimigos”.
Portanto, em guerras, aos inimigos não se garantem direitos, senão unicamente a morte – daí porque tanta obsessão em armar a população (somente a aliada, por certo).
Outro motivo é o fato de existir um traço comum a governos totalitários – também conhecidos como ditaduras -, sejam esses de extrema direita ou esquerda, tanto faz: além do extremismo, todos odeiam e temem o humor.
Em “O Humor É Coisa Séria” (ed. Arquipélago Editorial, 2014), o médico, psicanalista e escritor Abrão Slavutzky apresenta ótima e sucinta explicação sobre o fenômeno. A seguir:
“O humor incomoda o poder, desafia todas as formas de autoritarismo, como ocorreu durante a Inquisição Portuguesa no Brasil Colônia. O comediógrafo Antonio José, o Judeu, foi enviado a Portugal, onde terminou morto. Na década de 1930, o humorista Barão de Itararé foi preso muitas vezes e colocou um cartaz na redação de A Manhã, preocupado com a polícia: ‘Entre sem bater’. E a ditadura brasileira de 1964 prendeu e perseguiu a oposição, como os jornalistas de O Pasquim. Tanto no Brasil como no exterior, com o nazismo, estalinismo e as ditaduras em geral, os humoristas foram ameaçados, presos e até mortos. A rebeldia do humor apavora os fanatismos.
O humor tem uma ética que elimina toda forma de hierarquia, seja ela econômica, política ou religiosa. Uma ética em que os ricos podem revelar-se pobres de espírito, pouco espirituosos. Uma ética que suporta o inevitável, pois nem sempre se vence o destino. A ética do humor questiona as verdades, não se deixa empolgar e segue, em alguma medida, a Dom Quixote, que sorri diante dos fracassos. Por isso o Supereu do bem-humorado é benigno e não sádico e severo, goza da perfeição, tolera as falhas e até ri delas. A pessoa pode assim manter seu amor-próprio até mesmo nas situações de fracasso. A ética do humor se diverte com as ilusões e não entra em pânico, nem diante da morte, afirmando seu poder erótico diante das adversidades.”
Conclui-se que, além de questionar verdades absolutas, ao não ser sádico, porém tolerante; ao instigar o riso e não o ódio, o humor tem mesmo muita razão para incomodar o autoritarismo – daí porque o “mito” do Terceiro Reich não admitia piadinha e tampouco brincava em serviço, sobretudo quando se tratava de exterminar a democracia e os inimigos imaginários.