Henrique Autran Dourado – 1953-2023 (homenagens)

Uma grande parceria

Dalmo Magno Defensor*

Conheci Henrique em 2008, logo após ele se tornar diretor executivo do Conservatório de Tatuí. Fui encontrá-lo na Escola Municipal de Música, em São Paulo; e após cerca de uma hora de conversa, ele me convidou a assumir o cargo de diretor administrativo-financeiro.

Assim começou nossa parceria, já de início com uma árdua missão dada pela Secretaria de Estado da Cultura: reorganizar a escola e modernizá-la, dando um choque de gestão pedagógica, artística e administrativa, mas sem descuidar da parcimônia e critério com que se deve gastar dinheiro público.

Para tanto, seria preciso desarmar espíritos, contornar restrições orçamentárias, resistir a sebastianistas, implantar uma estrutura funcional ágil e compatível com o tamanho e aspirações da instituição, comprar instrumentos, modernizar os escritórios, salas de aula e teatro – e, não menos importante, regularizar o vínculo profissional de mais de duas centenas de músicos e atores, que trabalhavam havia anos sem direitos e benefícios.

Assim foi feito, não sem algumas falhas e entraves, mas creio que o resultado foi muito positivo; e só foi possível obtê-lo porque Henrique não temia inovar, o que incentivava a equipe a ser criativa; e delegava funções, transmitindo aos subordinados a mesma confiança que ele tinha no projeto e em sua capacidade de realização.

Mas conviver com ele, mesmo que por pouco tempo, inevitavelmente transcendia a mera relação profissional. Henrique era muito culto e inteligente, piadista e, por ter convivido com meio mundo artístico, sempre tinha uma história saborosa para ilustrar o assunto – o que não raro convertia rápidas conversas profissionais em longos e animados bate-papos.

Aprendi muito com ele. Sobre música, sobre teatro, sobre gestão cultural e até sobre meandros da administração pública e da Justiça, que ele conhecia tão bem quanto um burocrata ou advogado de carreira. A verdade é que, além de saber muito sobre certas coisas, ele gostava de pesquisar o resto – o que explica o ecletismo de suas colunas n’O Progresso, e minha certeza de que, se Google e Wikipédia tivessem programas de milhagem, Henrique teria dado várias voltas ao mundo de graça.

Como ele chegava mais cedo e saía mais cedo que a maioria, com frequência eu o via indo embora em seu passo lento, rumo ao estacionamento, de colete de fotógrafo e sandálias de couro. E é bem assim que visualizo sua derradeira partida: tranquila, de consciência limpa, com a serenidade dos sábios. Que descanse em paz.

* Foi diretor administrativo e financeiro do Conservatório de Tatuí entre 2008 e 2013. Atualmente é diretor de gestão da Fundação Theatro Municipal de São Paulo.


Até breve, professor Henrique!

Deise Juliana Voigt *

Lembro-me como se fosse hoje quando ele chegou ao Conservatório de Tatuí. Longos cabelos encaracolados, andar lento, olhar calmo e muita disposição. O cargo de novo diretor executivo da Associação de Amigos do Conservatório de Tatuí, organização social que até então poucos sabiam como realmente funcionava, não era exatamente confortável. Havia uma forte resistência da equipe operacional e total desconfiança da classe artística por conta das inadiáveis mudanças estruturais.

O necessário porém indigesto processo seletivo, que resultou na contratação dos mais de 300 funcionários via CLT (Consolidação das Leis dos Trabalhos) foi a primeira das seguidas mudanças que renderam à escola alguns de seus mais frutíferos anos artísticos e pedagógicos.

Os anos de 2008 a 2018 no Conservatório de Tatuí, sobretudo entre 2010 e 2014, foram marcados pela presença de artistas reconhecidos internacionalmente tanto na música clássica quanto na popular. Os concertos grandiosos, seguidos de aulas técnicas e workshops, espremiam-se na programação. Nunca se produziu tanto. Nunca alunos tiveram tanto espaço quanto naquele período. Nunca o palco do teatro “Procópio Ferreira” recebeu tantos artistas simultaneamente.

A chegada do professor Henrique e da equipe selecionada por ele foi seguida de uma reforma administrativa, iniciada pela contratação formal de artistas. Reformas físicas e estruturais foram realizadas. Uma nova logotipia foi desenvolvida, cursos foram implementados – entre eles o inédito curso de fortepiano na área de performance histórica. Os grupos artísticos, que antes eram três, passaram a ser dez. Alunos e professores, lado a lado. Todo o instrumental de percussão sinfônica foi importado e celebrado, assim como a retumbante chegada dos novos pianos Steinway & Sons. Um acontecimento.

Estudantes puderam obter certificação tecnológica reconhecida por meio de parceria surgida a partir da obstinação do professor Henrique em atender a alunos que reclamavam do certificado do Conservatório de Tatuí “não valer nada”. A área pedagógica foi reorganizada e áreas pouco reconhecidas, como o curso de choro, tornaram-se um departamento específico na grade curricular do Conservatório de Tatuí.

O setor de artes cênicas ganhou um prédio próprio, só pra ele, ampliando a área física do curso de cenografia. O curso de luteria foi ampliado, ganhando inclusive um concurso internacional.

Por conta da influência – e um pouco de teimosia – dele, o Conservatório de Tatuí passou a utilizar o prédio do antigo fórum da cidade, onde hoje está a Unidade 2. A incorporação da área ao Conservatório de Tatuí foi uma das maiores conquistas da administração dele, o que lhe rendeu também alguns dissabores políticos.

Também por iniciativa dele, o Conservatório de Tatuí foi recriado no âmbito legal, depois de decretos antigos terem sido extintos – entre eles justamente o que criava a escola de música, na década de 50. Depois de muita insistência e explicações, o decreto foi restabelecido e a continuidade da escola, garantida.

Tive o prazer de acompanhar a maior parte das ações do professor Henrique no Conservatório de Tatuí ao longo de nove anos.

“Professor Henrique…”, iniciava eu. “Henrique”, corrigia ele. Até que um dia ele desistiu. Eu jamais conseguiria chamá-lo pelo primeiro nome ou usar “você”, como me pediu muitas vezes. Meu respeito e admiração eram tão grandes, que eu sentia necessidade de chamá-lo de professor, denominação muito próxima da maneira como ele dividia seus dias com quem estava ao lado dele.

O professor Henrique era inteligentíssimo. Discutia literatura como literato, direito como advogado, tradições culturais como pesquisador. No fundo, acho que ele era de tudo um pouco. Além de músico, escritor, piadista.

Tive a grande sorte de ser chamada por ele de “amiga”. Ele iniciava o expediente sempre muito cedo. Passava pela portaria para retirar seus jornais, batia papo com o Durvalino Longanezze e com o seu Mota. No escritório, que reduziu a dois terços do tamanho original logo que assumiu, comia suas torradas com manteiga. Quando eu chegava um pouco antes das oito da manhã, era invariavelmente o escritório dele minha primeira parada. Ao final do dia, descia com passos lentos escada abaixo. O professor Henrique repetia a rotina diariamente e, pasme-se, invariavelmente também aos sábados e domingos. Da sala de som, acompanhava ensaios e pré-apresentações.

Por poder ter convivido de forma mais próxima a ele, tive a honra de ter sido chamada de “amiga”. O professor Henrique não era apenas um sujeito divertido ou gestor íntegro, ele era um amigo leal e um pai incrível. Em uma de nossas conversas, disse a ele que ele era um pai exemplar. Incrédulo, pediu mais explicações. “Olhe para seus filhos, professor Henrique. Todos eles são pessoas essenciais em suas áreas, com alto nível de graduação, educados. Você só pode ser um bom pai.”

Os quatro filhos – Marta, Lucas, Isabela e Pedro – eram seu maior orgulho. Não havia conversava em que ele não citasse um deles. Ou todos eles. Como todo bom pai, enumerava as qualidades e nunca, nunca!, fez críticas a eles publicamente. Ultimamente ele havia instalado em casa, com ajuda do Pedro, quatro relógios iguais, um abaixo do outro, indicando o horário do país onde cada filho residia.

Ele foi um dos maiores apoiadores de minha própria maternidade: vibrou quando contei da gravidez e mais ainda quando minha filha veio ao mundo.

Quando o professor Henrique chegou a Tatuí, sozinho com dois filhos pequenos, quase ninguém acreditava que ele iria, de fato, ficar na cidade. Só quem prestou serviços para o setor público, na área cultural, sabe a instabilidade que era. O saber popular – leia-se fofocas de camarins – dizia que o professor Henrique havia sido enviado para fechar o Conservatório e, depois, iria voltar para São Paulo. E por muito tempo era essa a grande crença e, pessoalmente, creio eu, a maior injustiça sofrida por ele.

O professor Henrique não apenas contribuiu enormemente para o crescimento do Conservatório de Tatuí como, incontáveis vezes, se indispôs com o próprio governo por se recusar a reduzir custos e proteger artistas. Mas, o mais interessante ainda, pouco após chegar à cidade, ele já conhecia mais de Tatuí que muitos tatuianos.

De tanto rodar por aí, conheceu o cururu e se apaixonou por ele. Frequentava as rodas de cururu e resolveu levar a tradição popular ao próprio Conservatório. Primeiro, realizou um concurso estadual com premiação em dinheiro e acirrou a disputa entre os cantadores no palco sagrado do teatro “Procópio Ferreira”. Depois, realizou nova edição na Concha Acústica, com direito a show de Almir Sater. Em seguida, passou a premiar também os lutiers de viola caipira.

A valorização da tradição popular caipira foi uma de suas mais respeitáveis ações. O envolvimento dele com o cotidiano da cidade de Tatuí era tão genuíno que ele decidiu construir a própria casa aqui. Ao contrário do que diziam, o professor Henrique nunca mais voltou para São Paulo, pelo contrário, faleceu em Tatuí. Ele amou a cidade apesar de, de certa forma, nunca ter sido de fato reconhecido por ela. Aqui, uso uma frase dele:

“Mas contente-se: as coisas mais lindas, as mais preciosas não se conquistam facilmente.”

Mas ele nunca se ressentiu. As premiações e reconhecimento que sempre recebeu de diferentes classes do país eram cuidadosamente catalogadas e guardadas. E ele seguiu vivendo em Tatuí.

Uma das muitas lições compartilhadas por ele – além da lisura – foi a discrição. Nunca vi o professor Henrique falar em tom alto. Ou usar palavras inadequadas – aliás, o cuidado dele com a Língua Portuguesa era fenomenal. Quem leu a coluna semanal em O Progresso de Tatuí bem sabe. Ele se despediu discretamente da vida, assim como viveu.

Aos mais próximos, compartilhava histórias de seus tempos na Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), de sua convivência com o maestro Eleazar de Carvalho, de longe um de seus maiores ídolos.

Quando soube da morte dele, levei um susto. No último dia 4 de maio, depois de nossa habitual troca de mensagens por conta do aniversário dele, havíamos combinado de nos encontrar no ano que vem. Eu só não contava que ele iria para Plön* sem me avisar.

* Foi mais ou menos no ano de 2016 que o professor Henrique sonhou com uma cidadezinha alemã. O sonho foi tão real, tão nítido, que chegou a ouvir o nome do município. Desde então, passou a falar sobre Plön repetidamente. Às vezes, me pedia para fazer algumas traduções. E, como sempre fazia, pesquisou sobre a cidade. A filha dele, Marta, chegou a visitar Plön dias após o sonho.

Em um de seus vários textos sobre a cidade, escreveu:

“Vou-me embora para Plön, lá serei amigo do Rei…

Castelo da Princesa. 14 séculos (o Castelo é do séc 18) e ninguém corta um arbusto, porque não precisa. Ninguém constrói um edifício, porque a população no séc 17 era de mil, e 4 séc depois 13 mil. Não precisa. Vereador não recebe, porque não precisa, há poucos problemas e a cidade não fica mudando os nomes das ruas como aqui, eles continuam os mesmos. Quase não há necessidade de novas leis, porque as que existem funcionam. Quase não é preciso de Polícia, crimes são raros. Água não falta, Plön fica no meio de 17 lagos – que não congelam – daí a palavra ‘plune’, adotada pelos Dinamarqueses durante a ocupação. Só tem um problema: eles falam a língua mais difícil, o alemão.

(…)

Tudo isso comprova que uma grande cidade não é medida por números astronômicos, como nas nossas grandes capitais, e sim pela qualidade de vida e cultura que pode proporcionar. Uma grande cidade não é feita de números absolutos, mas de conceitos relativos.

(…)

Conclusão? Sei lá, acho que nunca vou saber. Ficará tudo reduzido a um belo mistério, e assim deverá permanecer, bem como minha descoberta dessa cidadezinha alemã adorável. Que tudo isso me sirva para melhor valorizar minha vida em cidade do interior. (E que eu possa também entender tudo isso como um singelo e incomum convite para um roteiro de férias. Com direito a uma visita a Plön, é claro).

Professor Henrique, obrigada pelos ensinamentos, oportunidade, contribuições. Sobretudo: obrigada pela honra de tê-lo chamado de amigo.

* Tatuiana, jornalista e ex-gerente de comunicação do Conservatório de Tatuí


Colunista mais que pontual

Ivan Camargo *

Durante quase 14 anos, o professor Henrique (assim eu o chamava, embora nunca tivesse tido aula com ele, senão informais de cultura em geral e gentileza em particular) escreveu artigos na página 2 de O Progresso de Tatuí.

Mesmo que pudesse entregá-los até quarta-feira, em tempo tranquilamente hábil para publicação na edição de final de semana, nunca passou de segunda-feira – em todo esse tempo…

No geral, já os encaminhava no domingo. Penso que apenas este exemplo demonstra bem o grau de comprometimento do professor Henrique para com seus afazeres, sobretudo os relacionados à arte e à literatura.

Não foi apenas um colaborador, portanto: foi uma espécie de enciclopédia semanal de conhecimentos gerais, uma fonte viva, humana, de cultura e didatismo.

Mas, foi além, como demonstra em sua primeira coluna aqui publicada (que pode ser lida em republicação em seu tradicional espaço, neste final de semana): o professor “provocava” – ou, como ele dizia, escrevia de maneira a “distrair e bater a carteira”, indicando uma direção em seus artigos para, de repente, surpreender com algo inesperado, pegando o leitor de surpresa.

E tudo de maneira – com uma forma – elegante, talentosa, “bem escrita”, acima de tudo! Servia para mim, inclusive e de certa forma até marota, para chamar a atenção de novos repórteres (alguns nem tão jovens) para a importância de se escrever corretamente – e, claro, de ler para alcançar a condição mínima de bom redator.

Eu dizia (sem contar que o talento vinha de família, vez que Henrique era filho do grande escritor Autran Dourado): “Veja (fulano repórter), o professor Henrique, que é músico, não tem nenhum erro de português na coluna dele… E você… Precisa ler…”.

Mas, Henrique não apenas deu aula de bem escrever, foi mestre como músico, pesquisador, gestor cultural e, como se fosse pouco, ainda se apaixonou por Tatuí e, o que é mais importante, apegou-se às nossas raízes culturais, caipiras, que passaram a ser dele também – pelas quais muitos legítimos tatuianos, surpreendentemente, ainda não se sensibilizaram…

Tanto é verdade que o professor, mesmo após aposentado da direção do Conservatório de Tatuí, permaneceu na cidade. Da mesma forma que, agora e para sempre, sua história, seu legado, sua literatura, sensibilidade e cultura permanecerão em Tatuí e no Brasil – assim como me comprometo a manter sem fim a mostra marota do talento do professor aos novos carentes de livros, até porque o conhecimento é eterno!

Deixo aqui meu carinho e gratidão ao amigo Henrique pela parceria de tanto tempo e cumplicidade de ideias, admirações pela arte e desejos verdadeiros por um país mais justo, feliz e acolhedor!

* Editor do jornal O Progresso de Tatuí


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