Embora não seja possível e, portanto, nem correto datar o momento em que, a partir do qual, as pessoas perderam o pudor de não se incomodarem com a própria ignorância, é possível considerar o ano de 2018 um marco neste aspecto – pelo menos no Brasil.
Até então, “estar por fora” era motivo de certo constrangimento, qualidade de alienado que não se interessa por nada, que nunca abriu um livro ou leu jornal na vida – ou, por uma consideração estrutural do país, de quem não teve oportunidade de um estudo formal decente.
Por qualquer viés, contudo, o indivíduo mal informado esquivava-se de conversas um pouco mais substanciosas, acima das que a superficialidade do dia a dia costuma proporcionar. Não obstante, graças ao tal“comportamento de manada” – que tomou conta das pradarias digitais -, tudo mudou
Ou seja, passar vergonha sozinho é uma coisa, mas, em grupo, a situação muda em muito, podendo tornar-se até motivo de orgulho. Por exemplo: antes, se um peão dissesse que a terra é plana, tal uma imensa chapa de isopor, iriam “caçoar” dele – para uso de expressão bem nossa aqui, de Tatuí.
No momento, porém, se esse mesmo fulano posta ou compartilha algo do gênero quadrúpede em suas redes sociais, é aplaudido pela manada da qual faz parte. A sensação de integrar um grande grupo, por sua vez, sobrepõe-se à vergonha e, pior, acaba reforçando a ignorância.
Alguns observadores do fenômeno, de maneira ainda mais preocupante, interpretam a escalada da jumentice como a maior ameaça não apenas à ciência, à “verdade dos fatos”, à educação formal, mas à própria democracia –ou seja, da sociedade como ainda a conhecemos.
E por qual motivo? Exatamente porque o princípio do respeito às liberdades individuais,somente garantido pela democracia, é francamente uma virtude asquerosa na visão encabrestada dos incautos e, assim, foco de fúria e alvo de ataques constantes.
Não por acaso, na atualidade, o próprio termo “direitos” tornou-se palavrão nos focinhos do rebanho. Claro, eles pressupõem respeito às opções religiosa, política, sexual e outras mais, tal como a garantia à informação livre e à opinião. Todos, conceitos basilares da democracia.
Daí decorre, sem espanto, o asco pela democracia e seus pilares por parte de quem não mais se envergonha pela ignorância. Com a sensação de segurança insuflada pelo rebanho–supostamente forte, coeso e unido -, esse contingente serve ao objetivo de arrasar com tudo que até então ocupava o campo do conhecimento real, garantindo-se um novo reinado sobre a terra (plana!): o da suprema fé na incultura…
Sucede daí – exatamente disso – o volume crescente de agressões a jornalistas e à imprensa em geral. O jornalismo, se executado também em respeito a seus princípios básicos, prima pelo pluralismo, pelas liberdades de opinião, pelo diálogo, pela verdade – tudo o que fanático detesta!
Em virtude disso, os desafios práticos enfrentados pela imprensa merecem a preocupação não apenas dos profissionais e empresas da área,mas de todos ainda não arrebanhados ao cabresto do obscurantismo. Isto, naturalmente, por ser a imprensa um dos sustentáculos da democracia.
Atacar a imprensa, por conseguinte, não deixa de ser ignorância, quando não, pior, manifestação de interesses políticos torpes, claramente montados na manada, pastoreando-a por um caminho que não só se distancia da democracia, mas que, francamente, não levará a grande população a nada que lhe beneficie.
Ou alguém do “povão” mesmo, por exemplo, acredita que, se ficar doente graças a maus exemplos de políticos sectários, será também tratado em algum aparelhado hospital militar ou no “Albert Einstein”? Não, gente! O povão vai para o SUS!
E ainda bem que há SUS no Brasil, senão a maioria da população enferma iria direto para o esquife… Algo a se pensar, aliás, porque o sistema público de saúde – com seus altíssimos custos -, não é prioridade para os atuais boiadeiros da política nacional, muito mais preocupados, literalmente, em armar seus capitães do mato (aliás, da milícia).
Frente à perigosa realidade, logo, atacar a imprensa é o mesmo que seguir em um propósito evidente de quebrar uma das pernas do tal Estado Democrático de Direito, é agir de maneira indisfarçada a favor de uma nova ditadura, de um golpe de estado.
É mais, certamente, que pura raiva pelo fato de a imprensa noticiar, por exemplo, a compra de R$ 15 milhões em leite condensado pelo governo federal…
A postura muito abaixo da linha da cintura que não se espera de um líder, com a esquiva às perguntas encoberta por palavrões próprios de moleques maloqueiros, é só mais um disfarce para o objetivo maior, cujo âmago é criminalizar a imprensa – como se informar o país fosse um atentado à nação.
Não o é, evidentemente. Mas, a premissa tem um aspecto coerente, apenas um, a fazer sentido somente para ditaduras: quem não enxerga a nação como algo pertencente a todos, mas, sim, a si mesmo ou a um grupo hipoteticamente superior, vê a imprensa como um atrapalho mesmo.
Daí a censura ser uma das primeiras medidas de todo e qualquer estado totalitário – sempre! No momento, para exemplificar a situação crítica, vale observação sobre as crescentes agressões sofridas pelo jornalismo, documentadas pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
A entidade publicou nesta terça-feira, 26, a edição de 2020 do Relatório Anual da Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, em evento online.
De acordo com o documento, em 2020, foram 428 casos de ataques – incluindo dois assassinatos –, o que representa aumento de 105,77% em relação a 2019.
O relatório é realizado através da coleta de dados de denúncias à federação ou a um dos sindicatos de jornalistas, feitas pelas próprias vítimas da violência ou outros profissionais da mídia, além da compilação de notícias publicadas pelos variados veículos de comunicação.
Segundo o levantamento, o ano que passou foi o mais violento desde o começo da década de 1990, quando a entidade sindical iniciou a série histórica.
O ano de 2020 ficou marcado por 2 casos de assassinato, 32 agressões físicas e 76 casos de agressões verbais/ataques virtuais. Outras categorias levantadas são: ameaças/intimidações; ataques cibernéticos; atentado; censura, com 85 casos; cerceamento à liberdade de expressão por meio de ações judiciais; descredibilização da imprensa; impedimentos do exercício profissional; injúrias raciais/racismo; sequestro/cárcere privado e violência contra a organização dos trabalhadores/sindical. Outros dados denunciam, por exemplo, o número da violência por gênero.
Na categoria de agressor, o presidente Jair Bolsonaro foi responsável, sozinho, pelo maior percentual de ataques. Foram 175 casos envolvendo-o, sendo 145 genéricos e generalizados a veículos de comunicação e a jornalistas, 26 casos de agressões verbais, um de ameaça direta a jornalistas, uma ameaça à TV Globo e dois ataques à Fenaj.
Os números, sem dúvida, são subestimados – até porque os jornalistas não costumam registrar as agressões do dia a dia, entendendo-as como “ossos do ofício”-, mas, ainda assim, evidenciam o perigo.
Por ora, a imprensa ainda se sustenta, e a população precisa decidir o que busca para o futuro, para seus filhos: se segue o rebanho incauto ou se, valorizando o “conhecimento” em amplo sentido (o que inclui boa educação, ciência e informação correta), se posicionará a favor da democracia e da liberdade.
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