Gilbert Kaplan, o maestro





(que só regia uma peça e não lia partitura)

Nascido Gilbert Edmund Kaplan em 1941, em NY, era um poderoso empresário, jornalista (um “tycoon”, à maneira do Cidadão Kane, do Welles), e tinha uma paixão: reger. Conto logo a seguir, em meio a algumas explicações, a história é muito saborosa. Pois ainda bem jovem, aos 26, Kaplan fundou a revista “Institutional Investor”. Vendeu-a 17 anos depois por 75 milhões de dólares – US$ 171 milhões, em dinheiro de hoje, R$ 684 milhões.

Como hobby e paixão obcecada longe dos negócios, passou a ouvir incessantemente a “2ª Sinfonia” (“Ressurreição”) de Gustav Mahler (1860-1911), uma das maiores obras de todos os tempos. Como adorava desafios, pagava aulas particulares a professores da afamada Juilliard School de NY, mas não queria estudar teoria, solfejo, contraponto, harmonia, essas coisas de escola: só queria aprender a reger a “2ª” de Mahler! Alugava o afamado Avery Fisher Hall, casa da Filarmônica de NY, e pagava músicos para que pudesse treinar a batuta no comando de sua peça, a única, a “sua” sinfonia. Com muito dinheiro, criou a Fundação Kaplan, que dava bolsas de estudos e promovia a música de Mahler. Estreou em público em 1982, regendo a obra, e apenas cinco anos depois a gravava, sob sua direção, com a Sinfônica de Londres. Três anos após, a afamada Filarmônica de Viena.

Adquiriu partituras e manuscritos de Mahler, que estão sob a custódia da Morgan Library & Museum de NY. Deu aulas na Juilliard School em curso noturno para aficionados – por Mahler. E girou o mundo, regendo a sinfonia mais de cem vezes, incluindo orquestras estelares como as filarmônicas de Nova Iorque, São Petersburgo e Los Angeles, a Royal Philarmonic de Londres e o La Scala. Após sua performance à frente da orquestra de Melbourne, foi saudado em jantar por um discurso de ninguém menos do que o primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating, também mahleriano.

Crítica e músicos se dividiam. Membros da Filarmônica de Nova Iorque faziam coro contra Kaplan (coisa nada incomum, tratando-se de uma orquestra), enquanto o rigoroso “New York Times” publicou uma avaliação espetacular, comentando sobre a precisão, os detalhes, a clareza do regente. Por essas e outras, ele foi convidado a reger a Philarmonia Orchestra de Londres com o coro da Ópera Estatal de Viena na abertura do festival de Salzburg, um Panteão da música. Ao final, dez minutos de aplausos de pé, já era uma grande atração musical.

A paixão de Kaplan pela música veio de seu irmão mais velho, Joseph Brooks, compositor que levou o primeiro prêmio da Academy Award de 1977, com a canção “You Light Up my Life”, e suicidou-se antes de julgamento por 11 estupros. Antes da perda, vivendo a depressão e morbidez do irmão, Kaplan levou adiante sua obsessão, publicando livros sobre a própria interpretação de Gustav Mahler para a segunda sinfonia, entre vários outros. Bancou a edição do manuscrito original da “Ressurreição” e gravou a obra mais de cinco vezes com grandes orquestras do mundo.

Mahler compôs o primeiro movimento desta sinfonia em 1888, como poema sinfônico à parte, chamado “Totenfeier”, música fúnebre. Em 1897, a obra completa teve sua primeira edição impressa pela Hoffmeister. A orquestração é tão monumental quanto a obra: 4 flautas, 4 oboés, 4 clarinetas, 4 fagotes, 1 contrafagote, 10 trompas, 10 trompetes, 4 trombones, 7 percussionistas, sendo dois deles timpanistas, com um enorme arsenal de teclados e instrumental miscelâneo, mais tuba, conjunto “offstage” (atrás do palco), órgão, vozes soprano, contralto e enorme coro misto, 2 harpas, cordas em grande número, com primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, alguns com uma quinta corda grave. Ou seja, um palco coberto de músicos.

Em 1986, com tudo isso na cabeça, Gilbert Kaplan veio ao Brasil, onde regeria nossa orquestra, a Osesp, à época comandada pelo grande Eleazar de Carvalho, em concerto do Teatro Sérgio Cardoso, sede temporária do conjunto. Trouxe consigo uma equipe enorme, e para tanto reservou um andar inteiro de um hotel de luxo em São Paulo para acomodá-la, sem falar em restaurantes finíssimos e aluguel de vans de primeira. Veio também com sua equipe de filmagens e equipamentos, coisa para ninguém botar defeito.

A apresentação foi um sucesso estrondoso, embora Kaplan não pudesse responder a perguntas básicas dos músicos. No intervalo do primeiro ensaio, alguns de nós subimos ao pódio para ver, na partitura, que diabos Kaplan lia. Surpresa: vários “stick-ons”, aqueles papeizinhos autocolantes, na partitura dele, diziam: “entrada à direita, violoncelos”, em azul; “entrada à esquerda, violinos”, em verde, e por aí vai. Ninguém do meu tempo de Osesp se esquece desse concerto, especialmente os colegas com quem ainda mantenho contato, como o Edmilson Nery, clarinetista, e Ozéas Arantes, trompista. Foi uma bela experiência, apesar de Kaplan não ter sido exatamente um maestro, mas provou que para se tornar um regente é preciso antes de tudo conhecer profundamente a música que se deve reger, entender sua história, ter o controle da batuta, mais do que se aprofundar em erudições acadêmicas. Estudo, claro, é indispensável, mas sem música antes, nada feito. Dedico este texto a Gilbert Kaplan, que faleceu há pouco mais de um mês, dia primeiro passado, pouco antes de completar 75 anos. Deixa um exemplo de dedicação.