Fora do cangote





Recentemente, a imagem de um brucutu espancando a ex-mulher dentro de um bar, na cidade de Álvaro de Carvalho (SP), ganhou a mídia e a indignação do país, com razão.

Menos mal que a mulher não sofreu ferimentos incuráveis e o imbecil acabou se entregando à Justiça. Filho de um vereador, Kelvin Luiz Assis Soares, de 24 anos, já respondia por mais de dez acusações de agressão. “Poderoso” o sujeito, não?

Não, claro que não. E extrapolando o óbvio de que bater em alguém com menos condições de se defender – seja mulher ou, até, homem – é “coisa de covarde”, como bem ensina o ditado, também se deve lamentar as consequências que esse tipo de atitude animalesca pode instigar na parcela sectária do chamado “empoderamento” feminino.

Muito além do uso banal dos novos termos politicamente corretos – que só servem como mantras para formar rebanhos incautos -, há duas questões a serem priorizadas: uma, que todo agressor deve ser punido conforme a lei (nesse caso, prisão do animal); e outra, que violência não deveria gerar violência.

Em outras palavras, não se pode confundir o tal “empoderamento” com algo que, no triste exemplo do momento, signifique que o correto seria a mulher ser tão poderosa quanto o imbecil e, assim, se defendesse quebrando a cabeça dele com um “soquetão”…

Mais sensato seria um “despoderamento” do homem, de tal forma que ele jamais tivesse a ousadia de agredir a mulher, ciente de que, se o fizesse, seria rigorosamente punido. De outra forma, não se estaria estimulando a paz, o diálogo, o “equilíbrio”, mas arrefecendo-se a “guerra dos sexos”.

Também infelizmente, há combatentes dessa guerra que, na verdade, não buscam o consenso, e situações geradas por trogloditas só favorecem essa milícia.

Um exemplo desta parcela sectária (reiterando, “parcela”) pôde ser notada também recentemente, quando a primeira-dama Marcela Temer posou de princesa da Disney no lançamento do programa federal “Criança Feliz”, dia 5 de outubro.

Por ele, vê-se quanto de hipocrisia permeia a retórica política, da qual também não escapam os “movimentos sociais”.

Fora o fato de “não combinar” estética e cronologicamente com o presidente (o qual, convenhamos, não fosse pela diferença de idade, bem poderia formar com ela a dupla de contos de fada “A Bela e a Fera”), o que mais tem incomodado o sectarismo é a opção da primeira-dama por ser isso mesmo: primeira-dama. E pronto!

Qual o problema? Segundo o feminismo extremo, ela não pode porque, aparentemente, não tem esse direito. Mas, por que ela (a exemplo de tantas outras) não pode viver o sonho de princesa, ainda que casada com alguém que, se faz lembrar a realeza, só a dos faraós (na aparência, bem dito)?

Diante disso, é muito gratificante a manifestação da jornalista e roteirista Mariliz Pereira Jorge, em artigo publicado na “Folha de S. Paulo”, dia 27 de outubro. Vale a pena a reprodução e, claro, uma reflexão a respeito:

“Tenho uma irmã oito anos mais jovem. Logo que ela se formou, sugeri que tirasse um tempo para viajar sozinha, de mochila, quem sabe estudar outra língua, trabalhar de garçonete, se virar longe da família, dos amigos, em outro país. Em minha cabeça, o plano era perfeito. Seria ótimo para sua formação, ela vai crescer como pessoa e como mulher. ‘Sua irmã não é você’, disse minha mãe.

É isso. As mulheres não têm os mesmos sonhos, não querem viver da mesma forma, não se encaixam no plano de vida que a gente tem, por mais bem intencionado que ele seja. Lembrei que eu mesma desagradei pais, namorados, amigos, chefes de trabalho por insistir em ser o que eu queria. Ou ao menos tentar da forma que podia ser a mulher que estava ao meu alcance.

Saí de casa cedo, pedi demissão incontáveis vezes, casei, descasei, casei mais tarde do que a maioria, não tenho filhos, mudei de cidade, mudei de novo, pago minhas contas, sou absolutamente dona do meu nariz. O meu diploma de feminista foi conquistado na vida, graças ao caminho aberto por outras mulheres e graças às minhas escolhas. Devo muito ao feminismo. Por causa dele sou a mulher que quero ser e sou feliz com minhas escolhas. Isso não significa que todas deveriam se espelhar em mim. Cada um, cada um.

É com espanto que semana sim, outra também, me deparo com lição de moral em textão que se propõe a exaltar a emancipação da mulher, condenando o tipo bela-recatada-do-lar. No fundo, é só arrogância para defender um único modelo: o que as autoras resolveram eleger como legítimos símbolos da mulher moderna. Quem não se encaixa não serve.

Vamos nos unir para ter mais igualdade? Sim. Vamos nos unir contra a violência? Sim. Vamos nos unir para garantir nossos direitos? Contem comigo. Mas não venham legislar sobre a forma como as mulheres devem viver, usando o cínico verniz da defesa de um bem maior. Estão dispensadas.

Espanta que a decisão de muitas mulheres de não trabalhar, cuidar da casa, dos filhos, vestir-se de camponesa, viver à sombra do marido, torrar o dinheiro em shoppings ou nos consultórios dos dermatologistas, não apenas seja vista como menor, menos nobre, mas seja totalmente condenado. E por quem? Por outras mulheres. É isso que me espanta.

É esse feminismo que queremos? Um feminismo que segrega, que critica, que nos impõe mais regras? O feminismo que prega que o lugar de mulher é onde ela quiser, desde que seja onde esse feminismo determina?

Não, obrigada.

Desde que participei de um bate-papo com uma dessas moças que coloca ‘feminista’ no currículo, no business card, no perfil do Tinder, percebi que parte do movimento tinha tomado um caminho perigoso. Eu e essa moça temos várias opiniões diferentes. Ela, por exemplo, acha que os homens têm de calar a boca quando uma mulher fala. Eu acredito que o feminismo precisa do apoio deles. Ela posa de defensora da liberdade feminina, mas teria me amordaçado, se pudesse.

Não é à toa que tem mulher fugindo do rótulo de feminista, inclusive aquelas que levam suas vidas de acordo com as diretrizes básicas da cartilha.

Espanta que algumas ativistas de hoje joguem o mesmo jogo do patriarcado, de ditar regras e condenar quem não as segue. Não é porque haja por aí dondocas desmioladas, princesas acasteladas, que estamos retrocedendo.

Espanta esse alarmismo de que caminhamos para o passado. Damos importância demais a ‘escolas de princesa’ e todas as bizarrices relacionadas, como a de educar as meninas para o casamento. A educação para o casamento sempre existiu e continua firme e forte em nossas igrejas pentecostais. Mas é só olhar para qualquer estatística do IBGE para saber que as mulheres estão casando cada vez mais tarde ou nem casando.

Me preocupa muito mais a quantidade de adolescentes pobres, grávidas, sem assistência, com o futuro comprometido por falta de políticas públicas do que algumas dezenas de mulheres brincando de boneca, mandando suas filhas (coitadas) para essas escolas de princesas. Essas meninas, bem ou mal, têm mães presentes. Se essa mães acham isso bacana, apenas lamento. Vida que segue.

Espanta nessa ode à defesa dos direitos conquistados que a mesma mão que bate em Marcela não bate em Marisa, tal qual primeira-dama decorativa, mergulhada até o nariz numa mistura mal-ajambrada de botox e preenchimento facial, mulher de político, que vive numa gaiola dourada e, tal qual Marcela, somente isso.

Tivemos uma primeira-dama antropóloga, engajada em causas sociais desde muito antes de ser sombra de presidente, e nem por isso as faculdades de antropologia se encheram de mulheres inspiradas por ela, que é sempre esquecida nesses discursos, que se revelam críticas mais políticas do que sociais.

Marcela não me representa. Angela não me representa. Maria não me representa. Joana não me representa. Eu me represento. Já é bem difícil, nenhuma mulher adulta precisa de outra dizendo o que é certo ou errado.

De que adianta me livrar do patriarcado para ter no meu cangote a patrulha de mulher dizendo o que e como devo ser? Só digo uma coisa: não passarão.”

Palmas para Mariliz! Cadeia para Kelvin Luiz!