Figuras musicais que todos deveriam conhecer – III: Osvaldo Lacerda





Poderia ser um sacerdote, um físico da USP, um filólogo, um desembargador. Um juiz, um psicanalista, talvez. Mas o bacharel em direito (último pedido de seu pai, segundo nosso assessor e seu ex-aluno Antonio Ribeiro), ao invés de ser pianista seguiu o conselho de seu mentor, Camargo Guarnieri, para se dedicar à difícil arte da composição. Uma trilha árdua, sem grandes esperanças de fazer dinheiro no Brasil, especialmente para gente como ele, que nunca cedeu aos apelos do dinheiro fácil, às aspirações popularescas e exposição na mídia.

Osvaldo não foi seduzido pelo canto da sereia do Koellreuter, movimento para o qual debandou quase toda a juventude compositora dos anos 1950. É autor de uma obra coesa, trabalhada, artesanal. Se Guarnieri foi vanguarda de si mesmo, quando quis, sem abraçar modismos e inovando aqui e ali, seu aluno foi obcecado. Não seria demais conceder-lhe o título de “o nacionalista número um” da composição brasileira. Ao se casar com Eudóxia de Barros, uma excelente pianista e sua ex-aluna, encontrou em sua cara-metade o par perfeito. Até hoje, seu Centro de Música Brasileira é “tocado” por Eudóxia, que é uma batalhadora incansável pela obra de Osvaldo e de todos os brasileiros.

Se parecia sisudo demais, era pura impressão, pois tinha um humor levemente irônico nos cantos dos lábios. Os óculos de lentes grossas deixavam seu olhar ainda mais longe, o que simbolicamente para seus alunos criava o distanciamento necessário à autoridade em classe. Irritava-se com estrangeirismos, apesar de ter sido agraciado com uma bolsa da Fundação Guggenheim para estudar com ninguém menos do que Aaron Copland e Giannini, nos EUA. Deles, aprendeu a técnica do ofício (a “carpintaria”, falava meu pai), mas nunca o idioma musical, que lhe era brasileiríssimo. E dizia que, apesar desse currículo, quem foi seu verdadeiro mestre foi o quase autodidata Camargo Guarnieri, com quem estudou por dez anos. Osvaldo entrou para a história como um compositor que traçou seu caminho e perseguiu-o com seu estilo próprio de compositor nacional por excelência. Foi uma formiguinha, no melhor sentido do trabalhador perseverante e metódico.

Conheci Osvaldo em 1985, ao ser contratado como professor da Escola Municipal de Música de São Paulo, e mesmo após eu me tornar diretor, em 1989, nosso relacionamento foi direto e franco. Ele era crítico quando queria, mas com a educação de um gentleman “de altos coturnos”. Aposentou-se em 1992, decisão pensada. Sua aposentadoria, perdidos os “penduricalhos” de Prefeitura, que pareciam engordar o salário, sumiram na inatividade: o valor era ridículo. Uma escolha pessoal, apesar de uma perda monumental para nós; mas foi bom para se dedicar ao seu ofício, sua missão, por mais quase 20 anos. Sua simplicidade era absoluta na escrita musical, na economicidade e na tapeçaria sem exageros de sua obra, o que simbolicamente transparecia em suas roupas simples e seu bem cuidado Fusca.

Houve vários episódios divertidos, alguns vindos ironicamente por sua honestidade de princípios: no aniversário dos 25 anos da escola, no Centro Cultural São Paulo, sentou-se ao meu lado com o programa musical da comemoração e, folheando-o, viu algumas peças que seriam executadas pela big-band. Osvaldo nunca foi marxista, mas dividia com Adorno suas opiniões quanto às formações norte-americanas: o filósofo e musicólogo alemão chamava o som das jazz-bands de “eunucóide”. Ao ler alguns títulos de standards americanos no programa, Osvaldo perguntou-me: “Mas vão tocar isso?” Pois ao final da primeira parte, ele sumiu. Nunca reclamou, apenas ignorou o que incomodava e saiu.

Gostava de escrever-me cartõezinhos – computador não era coisa para o Osvaldo, que compunha com lápis e papel –, que eu me orgulho de guardar. Praticamente um ano antes de nos deixar, escreveu-me um desses recados, em que dizia: “Seu pai é um frequentador um tanto assíduo das palavras cruzadas… P.S.: Em todo desjejum, decifro duas palavras cruzadas. Sistematicamente. É o que me ajuda a manter a memória”. Sua lógica era sábia.

Nos entreveros dos anos 1950, em que a corrente arrebanhada por Koellreuter se digladiava com os defensores da música brasileira – chamada nacionalista -, Osvaldo não poupou seu humor cáustico ao dar sua opinião musical: compôs algumas peças em que brincava com os “modernizadores”: o “Metrônomo Dodecafônico” e o “Sambinha Dodecafônico”, foram algumas incursões na “música de programa” (a que descreve pessoas, coisas, fatos ou objetos), como a “Máquina de Escrever” (para piano), com os toques percussivos das teclas e sininhos da alavanca de tabulação, e o “Ping-Pong”, para piano, que simula lindamente o jogo de mesa.

Osvaldo deixou para o mundo uma vasta obra e se faz sempre presente em recitais.  De Eudóxia de Barros, pianista de ponta, ex-aluna, viúva e baluarte na luta pela música brasileira, recebi o exemplar de um livrinho que o mestre não havia terminado, e que ela digitalizou em tempo recorde. Recebi um exemplar dessas “Curiosidades Musicais” com uma carinhosa dedicatória com que Eudóxia me fez ouvir como fossem palavras de Osvaldo, e elas me tocaram fundo, bem vivas: “Ao caro Henrique, esta última recordação de nosso Osvaldo, que lhe devotava uma grande admiração e estima. Abraço amigo, Eudóxia. São Paulo, 31 de março de 2012”.

A admiração é muito mais minha, embora a estima seja mútua, caro Osvaldo. Fique na sua paz, porque com sua música nos conforta.