Falece Ivan Gonçalves, artesão e ex-editor de O Progresso de Tatuí

Tatuiano tinha 76 anos e enfrentava problemas de saúde desde 2020

Ivan Gonçalves (1948-2024)
Da redação

Faleceu na noite deste sábado, 20, o artista plástico, empresário e ex-assessor parlamentar e ex-editor e proprietário do jornal O Progresso de Tatuí Ivan Gonçalves, aos 76 anos. Desde 2020, ele enfrentava problemas de saúde que o obrigaram a manter-se acamado.

Nesse ano, Gonçalves teve mais de um AVC (acidente vascular cerebral) em seguida e, na sequência, foi submetido a uma cirurgia cardíaca, acumulando dificuldades de deglutição, fala e movimento. O sepultamento ocorreu na tarde de domingo, 21, no cemitério Cristo Rei.

Ivan Gonçalves nasceu no dia 26 de janeiro de 1948, como de costume na época, pelas mãos de uma parteira, de nome “Malvina”, que residia no bairro 400, contou em edição especial sobre a terceira idade, publicada por O Progresso em agosto de 2016.

Filho único (teve um irmão que faleceu), era fruto da união de José Gonçalves e Udile Bassi Gonçalves, casal que teve toda a vida profissional dedicada à Fábrica São Martinho.

Ambos tiveram um único registro em carteira durante toda a vida. “Saíram de lá (da fábrica) somente para morrer”, brincou Gonçalves, nesse especial.

Ele mesmo também trabalhou na fiação, depois de ter se formado na Etec (Escola Técnica) “Sales Gomes” – na época, denominada “Escola Industrial”.

Já na década de 1970, mudou-se para a capital, São Paulo, onde estudou na Escola Panamericana de Artes. Segundo contou, a transferência também se dera em razão da ditadura militar (regime instaurado em 1º de abril de 1964).

“Na minha época, várias pessoas foram detidas. Quem não saiu (de uma postura ou ações de resistência ao regime), acabou morrendo”, sustentou o tatuiano naquela ocasião.

“Foi um grande favor que a ditadura fez. Do contrário, eu estaria em Tatuí até agora e não teria passado pelas experiencias mais interessantes do mundo”, analisou, nesse especial de 2016.

Contra a permanência dele em Tatuí, pesava o fato de que Gonçalves era simpatizante de um movimento político integrado por intelectuais, pessoas ligadas às artes e, acentuou ele, de “mente revolucionária” para a época.

Fundação do PT em Tatuí: Josué Fernandes Pires, Lula, Ivo Mendes e Ivan Gonçalves (foto: Arquivo pessoal)

O grupo foi o responsável pela fundação do PT (Partido dos Trabalhadores) cerca de dez anos depois, quando Gonçalves já havia retornado ao município.

A criação do partido aconteceu em 1982 – um ano depois de Gonçalves assumir a direção do jornal O Progresso -, com presenças ilustres, entre elas, do atual presidente da República e então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, além do professor Josué Fernandes Pires e do advogado Ivo Mendes.

“Naquela época, o pessoal não era fisiológico, era idealista. As pessoas acreditavam na possibilidade de que o país pudesse ser governado por gente simples, humilde”, afirmou ele, no especial.

Ainda em São Paulo, Gonçalves se juntou a um grupo de tatuianos, “uns tentando escapar da repressão”; alguns buscando trabalho; e outros, a profissionalização. Na capital, além de Mendes, ele conviveu com pessoas como o médico pediatra Jorge Sidnei Rodrigues da Costa e o produtor cultural Jorge Rizek.

“Nós morávamos numa mesma república, mas cada um tinha um motivo para estar lá. O meu era trabalhar e ficar meio quieto, esperar a poeira baixar”, reforçou Gonçalves.

“A democracia, por mais que não seja muito boa, como agora, que está meio estremecida, é melhor que qualquer ditadura”, comentou ele, já em 2016.

Na capital, ele estudou e trabalhou em atividades que, de uma forma ou outra, sempre estavam ligadas à arte. Aprendeu o ofício da diagramação e teve as primeiras noções de produção gráfica, aplicadas em negócios próprios anos depois.

Chegou a cursar comunicação, mas desistiu. Completou a Escola Panamericana de Artes. A instituição era uma das mais conceituadas da época e da atualidade.

Trabalhou em agências de propaganda e deixou São Paulo em 1973. A razão foi um emprego no setor em comunicação interna da Cybelar.

Na primeira ida à capital – das idas e vindas –, lembrou ter contado com a compreensão da ex-mulher, a professora Ana Maria de Camargo (Del Fiol), com a qual se casara em 1968. “Fui sozinho. Mais tarde, ela acompanhou”, descreveu.

O casal se conheceu em Tatuí, nos encontros que ocorriam na Praça da Matriz, chamados de “footing”. A expressão é originária do inglês “ir a pé” e consistia em caminhadas pelo local. O objetivo, claro: observarem e serem observados.

A ex-mulher é casada, atualmente, com Nelson Luiz Del Fiol.

Além de ter participação política, Gonçalves foi protagonista de um trabalho que ajudou – e continua auxiliando – na construção da história do município. Ele adquiriu em sociedade, em 1980, o jornal O Progresso de Tatuí, então administrado por Marina da Coll Camargo e José Nascimento.

A estreia de Gonçalves como empresário, entretanto, é anterior à aquisição do jornal. O tatuiano começou a pensar no assunto, contou, “quando a família aumentara”.

Em Tatuí, ele montou, anteriormente, uma gráfica. A empresa funcionou no prédio atual que abriga a redação de O Progresso, na praça Adelaide Guedes.

Sob a direção dele e da ex-mulher, o jornal funcionou em um imóvel ao lado, também pertencente à família. A compra foi fechada entre eles e Vicente Ortiz de Camargo, o Vicentinho, na época funcionário do Conservatório de Tatuí.

Anteriormente, ele se juntara a um grupo de pessoas para fundar o jornal “Integração”. “O Acassil José de Oliveira Camargo foi quem criou o jornal, junto com o José Reiner Fernandes”, informou, no especial.

Esses dois se reuniram com amigos para dar corpo à sociedade. Gonçalves deixou o grupo pouco tempo depois, por ter outros interesses profissionais e particulares. Um deles, assumir O Progresso de Tatuí, mesmo não se considerando “capacitado”.

“Não tinha experiência, formação, mas as pessoas acreditaram em mim”, disse. A compra do veículo de comunicação pelos novos proprietários levou algum tempo, lembrou ele.

“Eu frequentava o jornal quando era moleque. Mais tarde, certa vez, disse ao seu Vicente: ‘Gostaria de, um dia, comprar o jornal de vocês’. Mas eu não tinha dinheiro”, contou Gonçalves no especial que lembrou os 90 anos da publicação, em 2012.

“Após certo tempo, ele me chamou para vender O Progresso, mas eu continuava não tendo dinheiro. Ele dividiu o valor em 12 meses, e eu e meu amigo Roberto Dias de Souza, responsável pelo loteamento da Nova Tatuí, de Flávio Montezzo, compramos o jornal”, lembrou Gonçalves.

No momento da venda, uma exigência: apenas 80% do veículo seriam vendidos. Os outros 20% seriam divididos entre José Paulo de Moraes e João Batista de Moraes, os irmãos tipógrafos, presenteados pelos Ortiz de Camargo.

Após o primeiro ano, contou Gonçalves, Souza deixou a administração e, com o tempo, ele e a então esposa Ana também adquiriram os outros 20% dos tipógrafos.

“Ficamos um ano pagando a parte do Roberto e, depois, com o tempo, as partes do Paulo e Batista”, relembrou ele, que manteve a coordenação de O Progresso de Tatuí, ao lado de Ana, até 1994.

Os 14 anos nos quais Gonçalves esteve à frente do jornal foram marcados, principalmente, pelos avanços na área gráfica. Ele próprio afirmou que as mudanças foram graduais e nem sempre fáceis.

“Quando compramos, o jornal era composto ‘a frio’ – com tipos móveis, no sistema ‘letrinha por letrinha’. Depois de um tempo, compramos a linotipo, e tudo passou a ser feito ‘a quente’”, enumerou.

“Havia uma caldeira com chumbo derretido e, conforme a gente teclava, iam se formando as letras. Volta e meia, mãos e pés acabavam sendo queimados por aquele chumbo…”.

A impressão do jornal, enquanto em tipografia, aconteceu em cômodos adaptados da casa da família. “A máquina era gigante, um monstro. Tinha um rolo que puxava o papel sob um trilho e, quando retornava, fazia um barulho enorme, o quarteirão inteiro tremia”, contou Gonçalves.

“Vizinhança maravilhosa aquela, nunca ninguém reclamou. E tudo ficava dentro de casa: impressora, caixas de tipos, duas linotipos. Aquilo era tecnologia avançada para a época”, brincou ele.

Sob a nova direção, O Progresso de Tatuí apresentou sucessivas e progressivas transformações.

Em janeiro de 1995, deixou o comando do jornal, assumido pelo filho, Ivan Camargo. A gráfica já havia encerrado os trabalhos bem antes.

Em paralelo às atividades que desenvolvia, Gonçalves foi afinando um gosto pessoal. Ele era apaixonado por artes plásticas, mas dizia não se considerar um artista.

Mesmo tendo estudado sobre o assunto, afirmou, no especial de 2016, ser “preciso cautela quando se fala em conhecimento, produção e, principalmente, talento”. “A arte é meio perigosa de ser abordada, porque gostar é uma coisa e ser, é outra”.

“Para ser artista, tem que ser bom, tem que saber o que está fazendo, não é sujar a tela”, afirmou ele.

Apesar de não se incluir na lista, Gonçalves não deixou de produzir trabalhos próprios. A incursão no mundo das artes plásticas começou quando era pequeno. Basicamente, os trabalhos do tatuiano são compostos por quadros.

Na época do especial, porém, a produção já era menor. O motivo era a redução do campo de visão, fruto de um problema familiar congênito. Para pintar telas, ele precisava de auxílio de um ajudante. O apoio era para localizar cores e instrumentos. “Mesmo assim, eu insisto em fazer”, reforçou.

A produção concentrava-se em duas frentes: a primeira, esculturas de rostos de personalidades tatuianas (vivas e mortas); a segunda, mosaicos com figuras do Cordão dos Bichos. Nos dois casos, ele dependia de auxílio externo.

Uma das maiores dificuldades do artista era com a escolha das cores. As que têm tonalidade mais escuro, qualquer que seja o pigmento, eram confundidas com o preto. “Mas, eu não parei, estou daninhando”, contou.

Além dos trabalhos que aumentavam o acervo pessoal, Gonçalves ainda se engajava em movimentos ligados à arte. Em Tatuí, incentivou a criação do Centro Cultural Municipal.

Também colaborou com a realização do “Tatuí na Visão do Artista”, movimento que ajudou a projetar aristas locai, como Mingo Jacob e o trabalho autoral dele, por exemplo. Os quadros do artista tatuiano são premiados e ilustraram, em 2013, especial de O Progresso.

Nessa ocasião, ele dizia ter como meta juntar acervos de artistas variados. “A ideia seria unir tudo, porque a tendência é desaparecer”, comentou.

A preocupação residia, principalmente, no fato de as pessoas que detêm os acervos não terem conhecimento sobre técnicas de conservação. Com isso, dizia, “há risco de perda da memória intelectual produzida por ilustres tatuianos”.

Mesmo integrando movimento político, por outro lado, ele jamais exerceu função eletiva. A única passagem foi pela Câmara Municipal, como assessor parlamentar.

Mas, também por apreço à política, tornou-se “frequentador” assíduo de grupos. Os encontros aconteciam, quase sempre, em bares e restaurantes. “Todos os locais que tivessem uma porta aberta e uma luz em cima, eu encostava”, recordou-se.

Dizendo-se exigente consigo mesmo, o tatuiano não se considerava satisfeito com a trajetória de vida. “Muitas pessoas dizem que não se arrependem do que fizeram. Eu me arrependo, principalmente, porque acho que poderia ter gastado mais tempo com a arte”, avaliou.

Tempo é o que ele então dedicava como “recuperação” entre um trabalho e outro. O mais recente seria um livro de contos de personagens tatuianos.

A obra era de um amigo dele (Zé Batata), que foi reescrita e incluiria uma centena de causos. “Não é meu, mas eu comprei a ideia do livro”, antecipou.

Entre um trabalho e outro, Gonçalves fazia viagens. Gostava de visitar locais que têm relação com arte. Embu das Artes, por exemplo, era frequentada esporadicamente. Os passeios substituíram os encontros boêmios, após um problema de saúde.

“Tive um piripaque e um aviso, e fiquei com medo. Morrer é necessário para abrir espaço para quem está chegando. Esse raciocínio é bom, mas, individualmente, é duro de aceitar. Eu não gostei da ideia. Daí, dei um breque”.

Enquanto planejava as viagens, Gonçalves se mantinha ocupado com os trabalhos artísticos. Ele os considerava mais como passatempos que arte, porém. Além de fontes de água, construídas manualmente e com bambus, ele fazia molduras de quadros e os entregava de presente aos mais amigos. Tudo, na oficina de casa.

Alguns dos trabalhos acompanhavam relógios junto às fotografias. Para produzi-los, ele chegou a comprar mais de cem relógios. Jogou todos os ponteiros fora para fazer uso das engrenagens, incorporadas junto às imagens.

“Não ganho nada para isso”, contou Ivan Gonçalves, que dizia ter prazer no que fazia e não guardar ressentimentos. “Deixo mágoa para quem tem. Eu só levo a vida”, encerrou assim a entrevista.