‘Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema’





Ou: no Brasil, nunca houve ditadura

“… não gosto de samba, não vou a Ipanema / não gosto de chuva, nem gosto de sol…” Em “Lígia”, Tom Jobim corteja sua amada em inusitada declaração, simulando uma realidade pela arte do avesso. Marcelo Rubens Paiva, ótimo cronista (cujo pai foi assassinado pela ditadura), em um artigo recente traz uma pérola: “No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da ditadura, ao invés de uma análise crítica sobre a ditadura, digo, regime, neste espaço (N. do A.: coluna no “Estadão”) teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois seria censurada”.

A ditadura deixou-nos marcas como tatuagens, que esvanecem, mas cuja tinta é indelével. Aos 16 anos, tive uma letra censurada em um festival colegial do Rio de Janeiro: “um grito vivo de verdade, quando a cabeça queima”. Seria um slogan revolucionário? Como futuro músico, vi Caetano, Gil, Chico e Vandré (este último em estado lamentável) saírem do país, assim como uma enorme leva de brasileiros que, por cometerem o delito de opinião, eram – com certeza! – comunistas. Fui amigo de uma neta do Castello Branco, cuja casa era frequentada pelo gen. Vernon Walters, adido militar que chegou a ser diretor geral da CIA.

Hoje, relatos e documentos mostram que havia grande intimidade (ou promiscuidade?) entre programas norte-americanos como o MEC-Usaid e a Aliança para o Progresso e os interesses estratégicos e econômicos dos EUA. (O resumo da ópera era o perigo comunista, via Cuba, cuja revolução começou em Sierra Maestra com apenas 12 homens). Houve o fracassado Congresso da UNE – de onde José Dirceu nasceu para o país, talvez comunista no ideário, e hoje, se não estivesse preso, folgazão milionário. Fora a pífia tentativa de guerrilha ao estilo cubano no Araguaia, de onde surgiu outro José, o Genoíno. E a despreparada e juvenil guerrilha urbana de Fernando Gabeira.

Intelectuais tinham seus passos vigiados, e frequentemente eram presos e até mortos. Quem era contra o regime era comunista, esse o mote. Meu pai, já havia anos trabalhando na Justiça do Rio, recebeu a visita de um agente do SNI, que foi ter com ele com a missão de prendê-lo. O mundo dá voltas, e o policial se despediu dizendo que iria liberá-lo por causa de um grande favor concedido à sua filha, em épocas palacianas de JK. Hélio Pellegrino, psicanalista e escritor mineiro, era um quase vizinho, e frequentou minha casa até sumir. Sua esposa, Maria Urbana, conseguiu uma reunião com o gen. Sílvio Frota, comandante da 1ª Região Militar: “General, o senhor é um homem sensível, um intelectual…” Ao que foi bruscamente interrompida pelo comandante, que desferiu um chute na cadeira ao lado e bradou: “Intelectual, não, sou um homem de ação!” Meu primo frei Betto foi preso com mais três dominicanos, e cumpriu quatro anos, embora condenado a dois. Seguiram-se tantas prisões e mortes, como as do Vladimir Herzog e do Manuel Fiel Filho, cujas esposas foram homenageadas por Aldir Blanc e João Bosco: “Choram Marias e Clarices / no solo do Brasil”. E quantos foram enterrados em Perus por concessão de uma figura política nefasta!

O Partido Comunista Brasileiro teve seus momentos de legalidade, com Luís Carlos Prestes, e, depois, foi tolerado pelo regime: Niemeyer e Jorge Amado, comunistas, ajudavam a projetar um perfil mais permissivo do país no exterior. E aquele Jango do famoso comício da Central do Brasil, estopim do golpe, hoje seria tão socialdemocrática quanto qualquer discurso de Lula ou FHC. Como em 1964, hoje se fala em reforma agrária, sindicalismo, há bandeiras vermelhas de diversos partidos ditos ou não comunistas, mas não há correlação de forças para um golpe de lá ou de cá. Em 1965, baixaram o AI-2, que manietou o Judiciário e extinguiu os partidos. Em 1966, o AI-3 tornou as eleições indiretas. No mesmo ano, o AI-4 revogou a Constituição. Com o AI-5, em 1968, todos os direitos e garantias individuais foram suspensos, dando início a um ciclo de perseguições policiais que pareciam ataques do “Sturm und Nacht” (Tempestade e Noite) nazista.

O Brasil nunca passou do socialismo utópico dos poetas e sonhadores, não chegou ao socialismo científico do arcabouço ideológico do comunismo de Marx e Engels: a ditadura do proletariado, a divisão técnica do trabalho, e, mais do que nunca, a propriedade coletiva dos meios de produção. Já os partidos ditos comunistas de hoje assumem cadeiras nos legislativos, seus representantes eleitos pelo voto.

Neste sábado, dia 22 de março, um grupo pretende reeditar a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cuja versão de 1964 foi costurada por Ademar de Barros e Laudo Natel (então governador e vice de São Paulo) e suas esposas, teatralizando um apoio civil ao golpe. O que quer essa marcha agora? Levantam a ameaça de que Dilma quer a revolução comunista, coisa que nem a extrema direita ousa pensar! Querem uma intervenção militar, a extinção de partidos e o fim da corrupção. Mas se esquecem de diversos mi(bi)lionários de hoje, cujos pais, ontem, saquearam os cofres públicos ante os olhos vendados da Justiça, a boca amordaçada da imprensa e tanto sofrimento! As Forças Armadas hoje são guardiãs da Constituição, da democracia e da ordem, merecendo por isso nossa admiração. E a democracia, sempre digo, é como a mulher: pode ter lá seus defeitozinhos (nós homens os temos aos montes), mas ainda não foi inventado nada melhor.