Ditadura não rima com cultura

José Renato Nalini *

Quem conhece a História do Brasil sabe que promover cultura em terra de iletrados é missão quase impossível. Que o diga Mário de Andrade, que criou o Departamento de Cultura no município da capital paulista e se entregou a essa epopeia durante anos, até que o Estado Novo esfacelasse o seu sonho e arrasasse com o que já havia concretizado.

Essa foi a causa próxima da morte prematura desse notável escritor paulista, que integrou a Academia Paulista de Letras e que foi um dos mais vibrantes responsáveis pela sempre lembrada Semana de Arte Moderna, este ano a completar um século.

Desalentado com o golpe desfechado pela nova ordem, que o excluiu do Departamento de Cultura, foi para o Rio de Janeiro. Mas a angústia e sofrimento foram com ele. É o que se extrai de sua volumosa correspondência, mantida com inúmeros amigos. Sirvo-me do livro “Mário de Andrade por Ele Mesmo”, de Paulo Duarte, um de seus confidentes. Em 1938, ele no Rio, escrevia ao amigo: “Tenho mais que refletido, Paulo, tenho me esqueletizado em meu ser psicológico. Não me sinto propriamente triste com essas coisas, me sinto especialmente deserto. É uma vagueza, uma vacuidade monótona. Lá no fundo do deserto, uma miragem”.

A miragem era a retomada dos seus projetos, todos detalhados, mínima e minuciosamente definidos. São Paulo nunca mais teve um esquema tão completo para preservar e promover a cultura com a amplitude e abrangência que ela merece. Em 1939, ele já não tinha mais ânimo algum: “Não há mais esperança, morreu, está acabado. Foi um bom sonho que tivemos, mas agora já estamos acordados, m’ermão. Tira ele do sentido porque eu já tirei o sentido dele. Nunca mais minhas cartas levarão praí as penas do Departamento que são os nossos pecados”.

Mas o Departamento continuava sangrando dentro dele. Sua saúde física mostrava-se abalada. Nem sabia direito o que era: “Não sei se fígado, se rins, até falaram em apendicite. Sei que passo a maior parte do tempo deitado, um desânimo infinito”. Em 1943 as doenças progrediram, dores que “passeiam o dia todo aí por isso que chamam cabeça, numas pontadas fortíssimas”. Deixou de escrever artigos, três meses na cama, sem produzir. Escreveu o seu testamento poético, bem conhecido: “Quando eu morrer, quero ficar, não contem aos meus inimigos, sepultado em minha cidade”.

Quem diria que a história se repetiria e que os amantes da cultura também seriam defenestrados, desprezados e vilipendiados? É preciso estar atento. Ditadura não rima, nem gosta de cultura.

* Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022.