Ao lado de Luiz Felipe Pondé, o professor Mário Sérgio Cortella compõe a dupla de filósofos “pop star” da atualidade no Brasil. Bem menos polêmico que o colega – comumente tido como conservador e, portanto, mais afeito ao ideário liberal clássico -, Cortella é uma unanimidade em termos de simpatia e ponderação em quaisquer âmbitos ideológicos.
Autor de mais de 30 livros, afora a própria atuação como professor, é um dos mais requisitados palestrantes do Brasil – senão “o” mais. Com tão peculiar quanto culta forma de se expressar, é o maior responsável por desmistificar e, assim, popularizar a filosofia no Brasil.
Serve muito bem, portanto, ao momento delicado por que passa o país. Com informações, críticas e questionamentos, a filosofia contribui para o entendimento sobre a realidade e, ainda, ajuda o cidadão a formar autocrítica e critérios mínimos à tomada de decisões menos equivocadas.
Um destes equívocos seria a ideia de que “notáveis” – os tais salvadores da pátria – podem fazer sozinhos ou em pequenos grupos aquilo que a grande maioria não tem competência para fazê-lo.
No entanto, todos têm o direito de pensar o que quiserem. E isto, por sua vez, implica em respeito fundamental, sagrado: o direito à liberdade de opinião e expressão de cada um, até o de defender propostas e ideais sectários, extremistas.
O problema passa a existir, não obstante, quando a crença na salvação abrupta e arbitrária implica em a população abrir mão de boa parte de seus “direitos”, sobretudo de sua cidadania (cuja maior representação é, justamente, o voto em eleições diretas).
Isto não é segredo. Daí a observação sobre a maior peculiaridade destas eleições, que têm evidenciado o crescente desapreço pela democracia.
Já é inequívoco que contingente expressivo da população tem menosprezado sua própria importância como cidadãos e, portanto, candidatando-se ela própria a ser a maior responsável pelo eventual fim do estado democrático de direito no Brasil – muito mais que quaisquer políticos (ou partidos) autoritários.
Entre outros aspectos, o professor Cortella abordou exatamente esse perigo, no programa “Poder em Foco”, do SBT, há uma semana. Na entrevista, avaliou a realidade política atual e contextualizou-a historicamente, inclusive, dissertando sobre a imaturidade da democracia nacional.
O professor lembrou que, em 518 anos de história, o país esteve sob regime monárquico por 389 anos e, mesmo após a proclamação da República, em 1889, passaram-se cem anos (exatamente um século!) até a chegada de eleição realmente livre e direta para presidente da República – com a participação, também, de pessoas não totalmente alfabetizadas.
O apontamento, acentuado ainda mais por meio de números, explicita a fragilidade da democracia nacional e seu consequente pouco valor, somado ao longo de míseros 29 anos…
“Portanto, é uma população que viveu em uma relação de dependência do poder”, argumentou. Exemplificando, o filósofo evocou observação clássica de Lima Barreto – escritor que, também há um século, “apesar de marginalizado” (pobre, negro e bêbado), era um gênio literário –, segundo a qual, “o Brasil não tem povo, tem público”.
“Enquanto passa a caravana do poder, o público, aplaude, teme ou se afasta”, complementou Cortella. Ou seja, a democracia no Brasil não é tradição, é quase exceção.
Regra, na verdade, é o cabresto, não raro empunhado pela figura supostamente forte do senhor feudal maior, aquele a quem se deve temer e obedecer, mantendo-se prostrado e sem direito a protesto – tal como a ausência de todos os demais direitos “constitucionais”.
Por este aspecto, ainda somos uma colossal comunidade de escravos – brancos, negros, amarelos, vermelhos…
Óbvio que, com a efetiva civilização do país, a cidadania ganha corpo e não apenas aparecem os direitos, como também os deveres – o quais precisam, sim, ser obedecidos por todos.
Porém, não seria por outro motivo, senão por essa cultura secular de subserviência e culto ao paternalismo que muitos odeiam a democracia e seus direitos, pois deles advêm mais responsabilidades, sobretudo a de não apenas se preocupar com a política de quatro em quatro anos.
É mais fácil deixar “tudo” sob custódia de um governo pretensamente honesto, competente e – se sobrar tempo – um pouquinho preocupado com a tal justiça social.
Por sua vez, outro problema, porque a perfeição é irreal, tal a imensa maioria das promessas de campanha de todos os partidos. Por este motivo, os menos crédulos e incautos não apostam em soluções sectárias, independentemente de suas cores.
Não obstante aos desencabrestados, chega-se ao perigo maior: o de um conflito a deflagrar o fim da democracia, sustentado pelo pouco valor que a ela se guarda, pelo muito apreço ao paternalismo ainda presente e, sobremaneira, pelas hordas extremistas, ora gradativa e sistematicamente perdendo o respeito entre si.
Em última instância, se concretizadas as ameaças beligerantes, teria vez o colapso social, cujo drama é assim sintetizado pelo filósofo: “Guerra civil não tem vencedor, só sobrevivente”.
Por isso, segue Cortella: “Nossa nação precisa entender que a democracia é um bem precioso. Democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão”.
“Para evitar a opressão, é preciso haver ordem: ordem jurídica, ordem social, ordem legal. Quando pensamos em democracia como resultante da desordem, é o contrário. As ditaduras é que são a desordem, porque elas estilhaçam a capacidade de respeito que a comunidade construiu”.
O Brasil precisa dialogar nas divergências, defende o professor. “Uma democracia pressupõe que eu seja capaz de deglutir algo que não gosto, que eu não queria, mas que, se o outro tem direito, que o seja”, sentencia.
Portanto, se a vontade da maioria for eleger algum extremista, “que o seja”. Os demais – políticos ou eleitores derrotados – terão de degluti-lo ordenada e respeitosamente.
Contudo, que a digestão aconteça rigorosamente dentro do processo estomacal democrático e que, pelo menos, os insatisfeitos possam arrotar seus lamentos, discordâncias e reivindicações, fazendo pleno uso dos direitos de liberdade de opinião e expressão.