Dever de escolher quem nos ferra





Pela ordem: o tacape, o mito e o embuste. Foram estes os três instrumentos de que se valeu o homem, sempre, até hoje, para assumir o poder sobre os da sua espécie. Tudo por culpa do instinto gregário do animal: foi por causa dessa verdade natural que nasceu o poder. É claro que o agrupamento de muitos animais da mesma espécie impõe regras exigidas pela sobrevivência, o instinto maior dos indivíduos. O poder se fez necessário, porque os primatas, atrelados à força gregária, se entregaram tanto àquele ato gostoso da reprodução, se multiplicaram tanto e chegaram a um ponto tal, que foi preciso organizar a bagunça.

Tudo começou com o tacape, para tirar da liça o adversário que pretendesse o poder. Quer como instrumento perfurante ou contundente, quer na forma de humanos feitos senhores da vida e da morte pela força dos exércitos. Ao poder conquistado pelo tacape, seguiu-se o poder abocanhado pelo mito e pelo embuste.

O mito é aquela coisa que ninguém explica: a herança do poder, os reis indicados ou escolhidos por Javé no Antigo Testamento, por exemplo. E não escapa dessa ideia de mito também o poder aristocrático e o das oligarquias, antecedentes do embuste da democracia de Drácon, Péricles e Clístenes.

Essa democracia nascida em Atenas não passou de empulhação. Ela só usou o nome do povo para esfarinhar o poder dos aristocratas, substituindo-os por outros privilegiados. O vulgo, que é o “demo”, lhe empresta uma falsa etimologia. E dessa falácia a democracia nunca se livrou. O povo continua de fora. Não é ele que escolhe os pretendentes ao poder. Não é ele que faz a triagem. São os partidos políticos e as leis criadas pelos próprios interessados em se manter no poder. Alguém do povo, iletrado e pobre, que chegar ao poder por acaso, se transformará em palestrante internacional sábio e rico. E deixará de ser povo.

Então, democracia é isso: o povo é obrigado a escolher, entre meia dúzia de gatos pingados que lhe empurram goela abaixo, quem vai ficar com o dinheiro (fruto do trabalho do povo), quem vai dizer o que o povo pode ou não pode fazer.

Essa é a democracia, metáfora cheia de novelas e discursos, que se usa para designar o poder dos espertalhões. É em nome dela que mofamos nas filas do SUS, nas filas dos bancos, nas filas das repartições públicas, nas filas dos pedágios, nos engarrafamentos. É em nome dela que somos mal pagos, carregados como gado, apertados e bolinados no Metrô, nos trens, nos ônibus, que somos obrigados a engolir sapos e a meter o rabo entre as pernas.

É o nosso dever escolher quem vai nos ferrar, quem vai lavar a égua à nossa custa, quem vai continuar a nos deixar sem segurança, fazendo leis para proteger bandidos, sem educação, sem saúde, sem emprego, sem moradia, sem comer bombom antes de dirigir, e sem o elementar direito de levar o tacape de fogo na cintura ou na bolsa. Negado para quem quer o direito à vida, o tacape só é permitido para quem quer se manter no poder.

* Advogado e autor do livro “Esse Circo Chamado Justiça”.