Da reportagem
Benedito Pinto de Moraes tem 76 anos e acumula quase metade do tempo de vida dedicado ao cururu. Morador do bairro dos Mirandas, na zona rural do município, o tatuiano vem “disputando” quase sozinho e há 30 anos um dos maiores desafios do estilo de música caipira: manter viva a tradição e uma parte importante da cultura raiz do município.
Neste ano, após hiato nas atividades, “seu Dito”, como é conhecido, ganhou reforço do também tatuiano e múltiplo artista Jaime Pinheiro, uma das maiores autoridades da região no trabalho de preservação da identidade caipira. Com ele, forma “dupla” – a primeira da vida – que encarou uma disputa de cururu realizada não com viola e improviso.
Seu Dito e Jaime têm como meta preservar os costumes e as características que fazem do cururu um gênero musical único, de expressão no cenário da música popular não só do interior, mas do Brasil. Os dois uniram forças para viabilizar o projeto “Encontro de Cururueiros”. A proposta é reativar os desafios antigos que já aconteciam no “Recanto da Viola”.
O espaço é descrito como “um pequeno e rústico empório rural”, comandado pelo lavrador. A “venda” está aberta há mais de três décadas e, desde o primeiro ano de atividade, abriu as portas para os “centuriões”, apelido dado aos músicos que tocam e cantam nos desafios de cururu. Os encontros aconteciam religiosamente uma vez por mês, como explica Dito.
Acompanhados por violeiros, cantadores de várias partes do país já passaram pelo recanto, cantando trovas e se desafiando em versos improvisados.
As apresentações eram, até 2020, patrocinadas pelo lavrador. Seu Dito providenciava o equipamento, o cachê e o transporte dos artistas, tirando o recurso da venda de salgados e bebidas do estabelecimento.
As atividades, no entanto, precisaram ser interrompidas em função da pandemia de Covid-19. Com as medidas de isolamento social, estabelecimentos como o de Seu Dito tiveram de interromper o atendimento presencial, o que inviabilizou a realização das disputas de cururu.
Os encontros, até então, atraíam centenas de pessoas. Além dos cururueiros, familiares e curiosos da região, incluindo adultos e crianças, acompanhavam os desafios.
Não bastasse isso, o gênero musical tem sido menos difundido em comparação a outros estilos e em função da falta de políticas públicas que estimulem os encontros e viabilizem a formação e a renovação de público.
Pensando nisso, o lavrador – que se notabilizou pela missão de incentivar a manifestação popular – está direcionando os esforços para retomar as atividades.
Para isso, Seu Dito conta com orientações de Pinheiro para elaborar um plano de atividades de retomada dos desafios, que acompanha desde os 16 anos de idade e quer preservar como legado. “Moro no Mirandas há mais de 40 anos. Eu sou ‘natural’ do Guaxingu”, conta.
Crescido e alfabetizado no campo, o lavrador acompanha o cururu desde criança, mas as primeiras lembranças são do tempo de adolescência, quando deixou os estudos. “Cursei até o terceiro ano do primário. Naquela época, era difícil de seguir na escola”, contextualiza.
Em 1959, assistia as disputas com duplas famosas, das cidades de Piracicaba e Sorocaba, contra as de Tatuí. Os cantadores e os violeiros se encontravam em, basicamente, dois espaços: o Clube do Salão Pio X, da atual Basílica e Santuário Nossa Senhora da Conceição (Igreja Matriz), e o “Teatro Rosário”, que funcionava na antiga Igreja do Rosário.
Para acompanhar os duelos, Seu Dito fazia uma verdadeira peregrinação. Caminhava a pé por, aproximadamente, sete quilômetros. Saía de casa, andando por estradas de terra batida, até o Condomínio Residencial Colina das Estrelas.
“De lá, eu pegava um ônibus que vinha de Sorocaba para Tatuí. Naquela época, o transporte não passava aqui (no Mirandas)”, conta.
Em grupo, ou às vezes sozinho, ele deixava o bairro após o almoço. Chegava “à cidade” no fim da tarde e aguardava até o início da noite para assistir as disputas, conversar com os amigos e até mesmo paquerar. “Os duelos começavam às 20h e iam até às 5h da manhã”, relata.
As competições aconteciam, também, uma vez por mês. Daí o fato de Seu Dito manter a frequência e transformar sua venda em um “espaço sagrado” da manifestação cultural.
Embora tenha origem ligada à cultura indígena e à miscigenação com os portugueses, o lavrador conta que, na cidade, o cururu sempre esteve ligado ao movimento católico.
Entretanto, os duelos aconteciam apenas nos espaços cedidos pela igreja. “Quando tinha cururu, era só ele. Não tinha missa, não tinha nenhuma outra atividade religiosa”, acrescenta.
Na época, os encontros reuniam mais de cem pessoas, entre músicos de Piracicaba, Sorocaba, Boituva, Iperó e Cesário Lange. “O público lotava os barracões. E não tinha troféu, prêmio, nem vencedor”, explica o entusiasta, cuja disputa se dá fora dos palcos e dos violões. Para acompanhar as apresentações, o público pagava um ingresso. “O valor era irrisório”, diz.
As disputas de cururu acontecem em torneios. As duplas, formadas por um violeiro e um cantador, são avaliados pelas habilidades em improvisar, qualidade da voz e capacidade de manter o ritmo e a harmonia com os instrumentos.
Algumas competições podem ter regras específicas, como a obrigatoriedade de cantar determinados temas ou a proibição de repetir versos.
De modo geral, os torneios de cururu são considerados uma forma de preservar e valorizar a cultura caipira, além de promover a interação social e a diversão.
Nos duelos do “Recanto da Viola”, Seu Dito preserva o mesmo estilo dos encontros antigos. Duas duplas disputam por um período de dez minutos, alternando-se.
No decorrer de três décadas, renomados cururueiros e violeiros – uma boa parte deles que passou pelo teatro e pelo salão – também pisaram no palco dos Mirandas. Entre eles, os famosos Luizinho Rosa, Jonata Neto, Horácio Neto, Noel Matias, Zé Pinto (falecido recentemente), Paulo Galera, Esmeraldino, Zacarias, Donizete, Garotinho, Moacir Siqueira e outros grandes nomes da região.
O movimento dos “canturiões”, como também são conhecidos os cururueiros, no entanto, está se reduzindo. Na cidade, a tradição perdeu força em função de dois acontecimentos: o primeiro, a pandemia; o segundo, o falecimento do radialista tatuiano Aurélio Serrão Corrêa, conhecido como Helinho Beijo-Frio, em 2021, que apresentou por anos o “Roda de Violeiros”, um programa dividido em duas partes, com cururu e duplas sertanejas.
De lá para cá, a manifestação cultural sofreu “outras baixas”, com o falecimento de cururueiros tradicionais, como José Narciso, de Conchas, em 2015; Moacir Siqueira, de Piracicaba, em 2016; Cido Garoto, de Sorocaba, em 2018; e Zé Pinto de Moraes, de Tatuí, neste ano.
No bairro Mirandas, o lavrador está atuando para não só divulgar o trabalho desses precursores, mas manter viva a cultura desenvolvida por eles.
“Este espaço é uma referência, uma verdadeira relíquia”, conta Cláudio Aparecido de Siqueira, frequentador do recanto. Natural de São Paulo, ele mora no Mirandas há 14 anos. Conheceu o cururu ali, quando visitava a mãe.
“Foi aqui, nesse estabelecimento, que eu ouvi o som da viola e ouvi os versos dos cantadores pela primeira vez”, lembra. “Esse local é o único da região que valoriza o cururu. De longe, é o mais falado. Quando os encontros acontecem, isso enche”, conta o frequentador.
Além da música, o público tem acesso a churrasco, lanche e estacionamento próprio. “Todo mundo brinca, vai até um certo horário e nunca teve problema algum”, acrescenta.
E é esse espírito que Seu Dito quer manter e está lutando para reativar. A ideia é realizar novas edições de desafios com convidados das cidades vizinhas entre os cururueiros.