Cineasta de ‘A Navalha na Carne’ fala a colunista do jornal O Progresso

Professor Henrique Autran Dourado entrevista com exclusividade Braz Chediak

Da redação

Em tempos de quarentena, o ex-diretor do Conservatório de Tatuí e colunista de O Progresso Henrique Autran Dourado propôs-se a explorar o isolamento social por meio de obras de escritores, dramaturgos e cineastas.

Uma das obras que tratam do assunto confinamento é “A Navalha na Carne” (1969), filme de Braz Chediak, uma adaptação da peça homônima de Plínio Marcos e que faz parte da história do cinema nacional. O cineasta vive em Três Corações (MG), cidade natal dele, para aonde retornou e permanece semi-isolado.

Chediak nasceu no dia 1o de junho de 1942, é ator, roteirista, cineasta e escritor. Começou a carreira como ator no filme “O Homem que Roubou a Copa do Mundo (1963)”, de Victor Lima, ao lado de Grande Otelo, Ronald Golias, Herval Rossano e Renata Fronzi.

No teatro, atuou, em 1962, na peça “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, sob a direção de Paulo Afonso Grisolli. Em 1966, escreveu o primeiro roteiro para o filme “Na Onda do Iê-Iê-Iê”, de Aurélio Teixeira, em parceria com o diretor Renato Aragão. “Os Viciados” (1968) foi a primeira realização cinematográfica.

Com Aurélio Teixeira, foi responsável pelo argumento e roteiro do filme “Mineirinho, Vivo ou Morto (1967)” e da adaptação de “O Meu Pé de Laranja Lima”, em 1970.

Roteirizou, ainda, todos os filmes que dirigiu: “A Navalha na Carne”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, “Bonitinha, mas Ordinária”, “Perdoa-me por me Traíres”, entre outros. Ainda tem crônicas publicadas em vários jornais.

Aos 78 anos, Braz atua com jovens, arte, música e é agitador cultural. Ele não tem dado entrevistas e tornou-se recluso na cidade natal, contudo, cedeu uma conversa com o colunista, que é amigo dele. A seguir, a transcrição:

Henrique Autran Dourado – Como você vê um gigolô, uma prostituta e um homossexual praticamente centrados em um cenário de isolamento em um quarto de bordel?

Braz Chediak – São três personagens que estão ligados entre si por pertencerem ao mesmo universo particular, a prostituição, e ao mesmo universo universal: a miséria. Dois ambientes que levam as pessoas a um constante conflito, ainda que também à solidariedade, desde que sejam preservados seus interesses particulares. Isto foi o que primeiro pensei, quando li a peça, e quis passar aos espectadores do filme.

HAD: Como foi filmar a angústia, a loucura do bas-fond, e seu envolvimento psicológico no trabalho?

Braz Chediak – Desde criança tive intimidade com este cenário, já que a iniciação sexual de todo jovem interiorano era na zona. Mais tarde, com 18 anos, morei no coração da prostituição da Lapa, no lendário Edifício Souza. Convivi com as prostitutas, os gigolôs e os homossexuais que ali viviam, fiz amizade, vi e ouvi suas vidas.

Sempre me identifiquei com esses personagens. Também a leitura de Dostoiévski me ajudou a compreendê-los com mais profundidade.

Fiz o filme sentindo ternura por todos os personagens, que considero a maneira certa de filmar, de um diretor que não é brechtiano.

HAD – Você veria semelhanças com outras situações de confinamento, no que tange à relação entre seres humanos, suas neuroses e seus defeitos?

Braz Chediak – Sim. No cinema mesmo:  se analisarmos “Quem tem Medo de Virgínia Wolf”¹ e “Um Bonde Chamado Desejo”², por exemplo, veremos que as agressões e revelações só acontecem quando os personagens se confinam no mesmo ambiente.

Na literatura também isto acontece. Veja, por exemplo, o personagem de “A Pane”, de Dürrenmatt: ele se suicida após o julgamento feito na casa onde apenas buscou abrigo e se confinou com os outros personagens.

E Raskólnikov³, quando está sozinho, confinado em seu quartinho miserável, tem um comportamento diferente de quando está em outro ambiente, dialogando, etc., etc.

HAD – Você, obviamente, teve contato com o Plínio para fazer o filme. Ele te passava esses sentimentos?

Braz Chediak – Plínio era um amigo, e saíamos juntos quando eu ia a São Paulo ou quando ele vinha ao Rio. Raramente conversamos sobre os filmes mas, em entrevista à imprensa, ele diz que gostou. Queria, a todo custo, que eu filmasse “Abajur Lilás”.

Na época ele já não conseguia trabalhar, por perseguição política, e eu estava sendo visado, meus filmes sofrendo censura, etc. Ponderei a ele que seria perigoso fazermos o filme do jeito que eu imaginara. Ele compreendeu, concordou, e ficamos de fazê-lo mais tarde, mas isto não aconteceu.

O cineasta Braz Chediak (Divulgação)

HAD – Queria espremer os personagens para ver o caldo daquilo, e como diretor deu para sentir isso?

Braz Chediak – O Plínio, como o Nelson Rodrigues, não dava palpite nos filmes (pelo menos comigo). Raramente ele aparecia, via um copião e sempre dizia com aquele jeito dele: “Caralho, Chediak. Tá du caralho!” e desviava o assunto para contar as histórias que ele conhecia do submundo paulistano ou do meio teatral.

HAD – Você sentia com ele a angústia desse convívio entre pessoas cujos papéis na vida são tão diversos, dividindo um mesmo espaço?

BRAZ – Não. O trabalho do autor é um trabalho solitário. O diretor trabalha com um roteiro já escrito e estudado várias e várias vezes. Suas angústias são anotadas como uma rubrica para conversar com os atores.

Em geral o diretor tem um roteiro que não mostra a ninguém porque só ele entende. No “Navalha na Carne” tive a colaboração importante do Emiliano Queiroz, que conhecia bem a peça.

E, instintivamente, fui influenciado por diretores de filmes que vi na infância ou na adolescência. A cena em que Jece lava a cara da Glauce e a mostra no espelho, por exemplo, parece muito com a cena em que Marlon Brando lava a cara de Vivien Leigh em “Um Bonde Chamado Desejo”. É o subconsciente trabalhando.

Quando o diretor Italiano Giorgio Moser, palma de ouro em Cannes com “O Continente Perdido”, viu o filme, me disse que eu tinha obsessão por escadas. Só depois, pensando a respeito, vi que era verdade. Sempre fui fascinado por escadas de pedra, não sei o motivo.

Mas voltando à sua pergunta: é bom o diretor ter o filme pronto na cabeça, senão se confunde e pode perder o ritmo. E manter um filme num ambiente único, em preto e branco, miserável, é muito difícil. Se facilitar, o público sai do cinema.

Com “Navalha” foi o contrário: o público gritava, aplaudia, ria ou xingava os personagens como se tudo estivesse acontecendo ali, na sua frente. Foi bom fazer o filme.

HAD – Muito obrigado, Braz Chediak.

Notas:

  1. Edward Albee
  2. Tennessee Williams
  3. Personagem de Dostoiévski em “Crime e Castigo”