Cauby Peixoto nasceu em Niterói, em 1931. No colégio Salesiano, católico, teve os primeiros contatos com a música, cantando hinos sacros no coro. Passou a pegar a Cantareira, barca que faz dezenas de travessias diárias para o Rio de Janeiro, do outro lado da oleosa e poluída Baía de Guanabara. Conseguiu ser empregado no comércio, ainda muito novo, mas já havia decidido ser cantor, levando na bagagem a tradição musical da família inteira.
Desde cedo mostrava saber o valor da imagem do artista, e abusava de topetes, penteados e roupas chamativas, sabia como chamar a atenção. Um empresário passou a exigir-lhe roupas elegantes, moldando-lhe a imagem de futuro ídolo. Cauby arrumou um “bico” na Rádio Tupi, aproximando-se de artistas. À noite, quando podia, dava uma palinha em boates, com seu vozeirão grave seduzia as mulheres. Apresentava-se também no velho Teatro Rival, marco da noite e da boemia carioca, o coração da Cinelândia.
Dois dos seus irmãos foram morar em São Paulo, que na época era sedutora metrópole na escada rumo ao sucesso. E Cauby logo foi convidado, aos 20 anos, a gravar seu primeiro 78 RPM, “Saia Branca”, um “bolachão”, disco feito de ebonite ou material semelhante. Amante da música internacional, gravou uma versão de “Blue Gardenia”, sucesso de Nat King Cole, e logo passou a atuar também nos EUA, com o nome artístico de Don Coby. Chegou a alcançar o quinto lugar em vendas pela Billboard e foi capa de revistas estrangeiras. Ia aos EUA, e a cada retorno maior era o seu sucesso. Foi assunto na imprensa americana, que o pintava como um Sinatra ou Elvis Presley tupiniquim: “Life”, “Time”, “NY Times”.
Apaixonado pelo mundo, sedutor, chegou a assumir sua bissexualidade. Não pareciam suficientes as paixões e romances tórridos com as mulheres. Por isso não se incomodava em pinçar as sobrancelhas e carregar na maquiagem, exibindo seu coté feminino. Gravou quase 150 discos, alguns com sucesso estrondoso.
Eu morava no Rio, no início dos anos 1970, onde, além de estudar teoria e contrabaixo clássico, já era versado na conhecida “noite”, o roteiro de boates, além de tocar em shows aqui e ali. Raramente havia ensaios, não havia partituras – mesmo porque naquela época quase nenhum daqueles músicos saberia lê-las – era chegar e tocar. A regra para os baixistas: um ouvido no acompanhamento, outro na melodia e os olhos na mão esquerda do pianista, que conduzia os acordes. Essa experiência ajudava muito na habilidade de seguir a música, qualquer que fosse ela.
Um dia alguém me telefonou, perguntando se eu queria tocar em um show no Tijuca Tênis Clube, um belo espaço na Zona Norte carioca dotado de um grande auditório, e que seria com um conhecido artista. Viola no saco (ou melhor, baixo no “case”), fui no horário combinado, e apenas ao chegar fiquei sabendo que o cantor era ninguém menos do que Cauby Peixoto. Cumprimentei e conversei com o pianista, e só depois me disseram que o nome dele era Moacyr, irmão do ídolo. Preparado pela “escola do olho e ouvido” de acompanhamento, sentado à esquerda do pianista, não sabia o que viria pela frente, mas tinha cancha suficiente para tocar o serviço.
Com certo esperado atraso, a plateia, repleta e quase toda formada por mulheres, boa parte delas idosas, fazia um semicírculo aguardando o cantor. No escuro, apenas uma esfera de espelhos girava no teto, refletindo aqui e ali luzes e cores difusas em movimento meio alucinante. Uma voz em “off” anuncia: “Senhoras e senhores, Cauby Peixoto!” Todos em pé aplaudindo e procurando o artista, e um canhão – espécie de holofote que foca um local por vez, à medida que muda de posição – fazia que procurava o cantor, mas nada de ele aparecer. Eu olhava para os bastidores, de onde seria natural que ele surgisse. Nada. Depois de muito suspense, eis o astro, mas pela entrada do salão, do outro lado. Ele distribuía gentilezas com seu longo beija-mão, principalmente entre as senhoras das primeiras filas, uma por vez, cena de uns 15 minutos.
Enfim, subiu ao palco, cumprimentou-nos e pudemos ver aquele rosto bem maquiado, uma espécie de terno bordado em cores e pleno de brocados, tudo meio florido. Ao microfone, Cauby agradeceu a presença do público, assoprou beijos ao ar e disse: “Quero apresentar a vocês o meu conjunto; acabamos de retornar de uma turnê ao México…” Tratava-se, com certeza, da primeira e única vez que o via de perto na vida. Falou que gostaria de abrir o show com pedidos dos presentes, e dois funcionários passaram espécies de cumbucas de vidro, onde nos versos de seus ingressos fãs poderiam escrever o que desejavam ouvir.
Abriu o primeiro deles, disse o nome da pessoa sorteada e começou: “Feelings, nothing more than feelings…” (música do brasileiro Morris Albert, depois condenado por ser essa canção plágio rasgado de “Pour Toi”, de 1956, do francês Loulou Gasté). Ouvido absoluto perfeito, Cauby começara a cantar antes do acompanhamento, sem receber sequer uma “nota guia”. Lá pelas tantas, arpejou o acorde para o pianista, e o fez emendando na música: “Free again, ‘dó-lá-fá’”. E vieram pedidos de Beatles, como “Yesterday”, Sinatra, “My Way”, franceses, como Gilbert Bécaud, “Au Revoir”, e italianos, como Pepino di Capri, Nico Fidenco, Sergio Endrigo. Claro, teve muita música brasileira e seu carro-chefe, o sucesso “Conceição”. Sabia todas de cor, no tom perfeito (absoluto), um repertório imenso. Que grande e inesquecível lição de música e talento!