Beatles e diamantes, como os de Lucy, são para sempre





Em meu carro ouço Beethoven, Brahms, Richard Strauss, suítes de Bach e música popular. E muito Beatles. Disse o maestro Leonard Bernstein (1918-1990) que o conjunto inglês foi a melhor coisa que aconteceu na música popular vocal no século 20! Romântica, apaixonada e singela do início, aos poucos aperfeiçoada em forma e conteúdo, deu um salto em 1966, com o LP “Help!”, três anos após a estreia em disco, “Please, Please me” (1963). A lapidação formal e a maturidade de música e letra foram graduais, mas a revolução veio apenas depois, inovando com genialidade. Finalmente, o álbum “Sgt. Peppers” (1967) marca o início da experiência com drogas, depois atenuada em “Let It Be” (1970), menos arrojada mas de perfil mais maduro. Comento a seguir, em breve retrospectiva, os álbuns que foram mais marcantes para mim.

“Please, Please me” (1963) foi o primeiro LP, estreia do grupo, e falava de amor com simplicidade bastante juvenil: “love” era palavra recorrente, mas há uma feliz sutileza em benefício da dubiedade poética já na faixa-título. “Please” é por favor, mas “to please” é satisfazer, portanto o título pode ser traduzido como “por favor, me satisfaça, ou me dê prazer”. As entrelinhas das letras são sempre ricas, e há citações e alusões que passam despercebidas de quem não as conhece. Desse álbum, a faixa “Do You Want to Know a Secret”, de George Harrison, é uma cândida declaração de amor: “Ouça, você quer saber um segredo? / você promete não contar? / (…) Vem perto, deixe-me sussurrar em seu ouvido / dizer as palavras que você quer ouvir / estou apaixonado por você…”. O LP “A Hard Day’s Night” (1965), já com todas as faixas por Lennon e McCartney, também fala de amor, mas já surgem aqui e ali decepções pessoais e dúvidas, como em “I Should Have Known Better” (“Eu Deveria ter Percebido Melhor”), fora o amplo significado de um desabafo na faixa-título: “tem sido uma noite de um dia difícil” (N. do A.: “tem sido” indica uma constante na vida). E no álbum seguinte, do mesmo ano, o grupo faz novas e arrojadas incursões.

“Help!” (1965) traz na capa o quarteto em pose inusitada (cada um aparece com os braços em diferentes posições). A figura nada mais é do que um sinal de código de semáforo, antiga linguagem de bandeiras dos marinheiros para enviar mensagens de seus navios. No caso, significa as iniciais “H, E, L, P”. “The Night Before” (“A Noite de Ontem”) invoca momentos de uma noite de amor: “trate-me como você fez na noite de ontem”, e a faixa-título é pura solidão: “Help! Preciso do amor de alguém / Help, você sabe que eu preciso de alguém…” Em “You’re Gonna Lose that Girl” surgem ciúme e a cobiça: “Você vai perder essa garota / (…) Se você não sair com ela esta noite / ela vai mudar de ideia”. E a obra-prima musical e poética, talvez a mais sublime do grupo, “Yesterday” (McCartney), na perfeita forma AABA – sendo “A” para as duas estrofes que se iniciam por “Yesterday” e  “Suddenly” e a quarta e última por “Yesterday”. “B” é a terceira e penúltima: “Why she…” A obra-prima se encerra com dor de cotovelo: “Por que ela tinha de ir / eu não sei, ela não queria dizer…”

Em 1967, a revolução: “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (“O Clube da Banda dos Corações Solitários do Sargento Pepper”). Se os dois álbuns anteriores foram gravados no mesmo ano, 1965, o grande salto foi dado longos dois anos após, colorido por experiências com LSD – iniciais de “League of Spiritual Discovery” (“Liga da Descoberta Espiritual”), grupo criado por Timothy Leary (1920-1996), psicólogo do projeto Harvard Psilocybin até a droga ser declarada ilegal e professor e assistente serem demitidos da universidade. Uma das faixas de “Sgt. Pepper’s, “Lucy in the Sky with Diamonds” (“Lucy no Céu com Diamantes”) leva as iniciais LSD. Mas a alucinação vem explícita: “Pinte-se a si mesmo em um barco, num rio / com árvores de tangerina e céus de marmelada / alguém te chama, você responde bem devagar / uma garota com olhos de caleidoscópio”. Em “With a Little Help Form my Friends”, de Ringo Starr, também é clara uma alusão às drogas: “Eu fico ‘chapado’ com uma pequena ajuda dos amigos”. Por fora, Lennon, o mais culto dos quatro, assina a faixa “Being for the Benefit of Mr. Kite” (“Para o Benefício de Mr. Kite”), uma citação de um cartaz de 1843 do Circo Real de Pablo Franque.

“Abbey Road” (1969), nome de rua histórica em Londres por causa do sucesso que o álbum homônimo causou, é um LP cuja capa mostra o quarteto atravessando-lhe a faixa de pedestres. Entre as músicas, “Something”, de Harrison, e “Come Together” (“Venha Junto”), de Lennon, título de duplo sentido: o verbo “to come” tanto quer dizer “vir” quanto, no popular, “gozar” (ter orgasmo), como no popular “relax and come”. E “Here Comes the Sun” (“Aqui Vem o Sol”), de Harrison, é um lindo tributo ao astro-rei.

O álbum final, “Let it Be” (1970), também nome de música de McCartney, faz referência velada à maconha -, depois que a fase alucinógena do grupo já havia arrefecido: “quando eu me encontro com problemas / “Mother Mary” vem a mim / sussurrando palavras de sabedoria / deixa assim…” (“Mother Mary” é “marijuana”, no espanhol mexicano). Os Beatles foram a grande revolução cultural e de costumes, e nada além deles mudou mais a juventude de gerações. Tornaram-se clássicos. Para sempre, como diamantes.

(Todas as traduções de títulos e letras pelo autor são absolutamente livres e nunca literais, aliás como convém à poesia).