A Constituição de 1988 abriga no mesmo artigo 5º a tutela à publicidade, cujo nome é transparência, a maior virtude republicana, assim como a intimidade, outro nome da privacidade.
São bens da vida conciliáveis?
Para resolver o antagonismo, o neoconstitucionalismo propõe o uso de ferramentas que nem sempre foram consideradas pela ortodoxia jurídica. O raciocínio é singelo e sedutor. Os valores são princípios em si flexíveis, plásticos.
Lembram a massa de modelar que entregamos à criança para que ela desenvolva seus aspectos lúdicos. Pode-se manusear e elaborar qualquer tipo de produto: animaizinhos, objetos, figuras e monstrinhos.
Mediante utilização dos princípios da ponderação, da proporcionalidade, da razoabilidade e de outros, importados ou fabricados aqui, por força da imaginação criadora dos hermeneutas, nós conseguiremos fazer conviver água & azeite.
Ou seja: num determinado momento, sacrificaremos a privacidade, num outro condenaremos a transparência. É o caso concreto, as circunstâncias fáticas, a orientação ideológica, filosófica, religiosa, política ou até idiossincrática do intérprete que entregará o produto final: a norma aplicada à hipótese sob apreciação.
Tudo muito bonito. Mas os lados continuam ouriçados. A defesa da intimidade, do direito de estar só, não se convence muito. Por outro, a transparência é uma regra inamovível. Não se vive numa República se existir censura, contenção, comedimento ou reserva. Tudo tem de estar disponível para conhecimento de quem queira.
O Parlamento, que deveria ser o estipulador das regras do jogo, nem sempre consegue enfrentar a contenda. Prevalecem interesses localizados e a lei quase nunca é a relação necessária que se extrai da natureza das coisas. É uma resposta pontual, tópica, a um problema concreto. Prevalece na sua elaboração, a força dos lobbies intervenientes.
Contamos com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que visa proteger o indivíduo do uso inadequado de dados pessoais. A internet prodigalizou a possibilidade de uma notícia, seja verdadeira, seja falsa, chegar de imediato a todos os lugares do planeta.
Mas quem é que fornece as informações para o mundo? Em regra, o próprio interessado. Não achamos bonito mandar fotos quando estamos em festas, em passeios, em visita a outros países? Estamos fornecendo o nosso DNA moral, que será bem utilizado por aqueles que nos fornecem gratuitamente os serviços.
Há muita coisa boa no mundo virtual. O controle da saúde, por exemplo. O monitoramento da fragilidade. A segurança online ininterrupta. Mas também há muita coisa má. De posse de nosso perfil, a seguradora poderá recusar uma apólice, pois saberá o que nos espera mais adiante. O empregador também escolherá outro candidato, em nosso detrimento. Sem falar que a propaganda localizada – não só comercial, mas política – saberá que somos incautos imbecis que nos convencemos de algumas falácias porque já as cultivávamos no recôndito de nossa consciência.
O caminho é sem volta. Estamos todos viciados e dependentes das redes sociais. Não vivemos mais sem elas. Pagamos um preço por isso. Mas não podemos nos considerar enganados. Nós mesmos nos entregamos. E, consciente ou inconscientemente, damos adeus à privacidade.
Não adianta invocar a Lei Geral de Proteção de Dados. Temos também a tutela ambiental no artigo 225 da Constituição da República e vejam o que acontece com a natureza vilipendiada por nossa cruel insensibilidade e maior ignorância.
Cada vez mais, cabe invocar Jean Cruet, autor do livro “A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis”, cuja epígrafe, em tradução livre, é eloquente: “Sempre se viu o homem modificar a lei; nunca se viu a lei modificar o homem”.
* Reitor da Uniregistral, Docente da Uninove, autor de “Ética Ambiental” e presidente da Academia Paulista de Letras.