
Tatuí 200: Outros fatos, outras histórias
Cristiano Mota
De 1820 a 1830, ocorre um processo gradativo de transformação na paisagem dos campos que viriam a pertencer a Tatuí: a mão de obra escravizada torna-se cada vez mais presente nas propriedades. Em 1822, os cativos correspondiam a 18,61% do contingente de trabalhadores livres – número que inclui os filhos, os cônjuges e os agregados das famílias.
Esse percentual pode, inclusive, estar superestimado, uma vez que considera também crianças, presumivelmente, não aptas ao trabalho. Já em 1824, mesmo com o crescimento populacional, a presença da escravidão se intensifica: os cativos representam 27,98% da força de trabalho em relação à mão de obra branca e livre, novamente englobando pessoas fora da idade produtiva.
Em termos absolutos, o número de escravos quase dobrou nesse intervalo, passando de 86 para 169 – um crescimento de 96,51% –, enquanto a mão de obra branca e livre aumentou 30,73%, de 462 para 604 pessoas. Esse avanço mais acelerado revela uma reconfiguração da estrutura fundiária e produtiva local.
A expansão da escravidão rural, contudo, não foi homogênea: esteve centralizada em 34 fazendas, mas de forma profundamente desigual. Apenas seis delas concentravam, juntas, 110 cativos – o que representava 65% do total –, enquanto as demais mantinham em suas lavouras de um a cinco escravos.
Parte dos africanos e seus descendentes, contudo, é incorporada à sociedade tatuiana, mas não de maneira formal. Há, entre os moradores, a partir de 1826, aqueles vivendo em posições ambíguas, não plenamente integrados e, portanto, em condições distintas.
Além dos mantidos nas senzalas, que, nesse período, representavam 15,37% da população total da freguesia (215 indivíduos), existiam os chamados “pretos livres”.
A esses, que haviam conquistado o direito à liberdade, restava o papel de agregados. Em muitas propriedades, por exemplo, eles estão contabilizados como livres, mas empregados nas produções em troca de comida e abrigo.
Neste ponto é preciso fazer uma distinção: a letra “p” nos registros poderia significar tanto “pretos” – como consta nas planilhas agregadas ao final de muitas listas –, como “pardos”, esses, surgidos do relacionamento entre os senhores de engenho com suas escravas, o que acontecia, muitas vezes, sem o consentimento delas.
Para a época, o mais comum era que os agregados fossem classificados como pardos, dado que, quando libertos, mantinham-se junto aos ex-senhores, em uma negociação de mando na qual ambos cediam.
Além disso, a caracterização da cor era um critério mais abstrato – não estritamente fenotípico –, relacional e circunstancial, variando, portanto, de acordo com o lugar ocupado nos domicílios.
Na fazenda de Francisco Xavier de Freitas, por exemplo, na posição 108 na lista de fogos, residiam 13 pessoas. Além do proprietário, com 54 anos, e sua esposa, Manuella Rosa, com 58, viviam lá os escravos Francisco, Antonio e Maria, crioulos, de 32, 20 e 10 anos, respectivamente; Joaquim (40 anos), Ignácio (16), Antonio (43) e Anna (26), do gentio da Guiné; e os agregados, dois com o nome de Manuel, um de 22 e outro de 16 anos; Ignácia, de 45; e Joaquina, de 11. Com exceção do jovem de 22 anos, listado como branco, os demais constavam como pardos.
Há exemplos concretos desse processo de classificação seletiva anteriores aos casos de Tatuí. Um deles é o do pintor, músico, entalhador e arquiteto Jesuíno Francisco de Paula Gusmão.
O mulato que nasceu em Santos, migrou para São Paulo e trabalhou, mais tarde, nas reformas do Convento do Carmo e do Hospício e na edificação da Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu, casou-se com Maria Francisca de Godoy, uma aristocrata falida, branca e de ascendência portuguesa, tornando-se liderança política e religiosa.
Contudo, dada sua cor, fora impedido de se tornar frade na Ordem dos Carmelitas Calçados, por não ter “sangue suficientemente puro”. Tornou-se, com ajuda do capitão-mor da vila, Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, clérigo secular, assumindo o nome de padre Jesuíno do Monte Carmelo. Na ocasião, Aranha fez constar nas listas nominativas de 1810 em diante o sacerdote como branco.
Ao contrário do religioso, que dispunha de prestígio, influência e recursos, muitos pardos embranquecidos, sem propriedades e vinculados a estruturas de trabalho que pouco diferiam da escravidão, permaneciam ligados aos antigos senhores, situação que impunha a eles uma liberdade limitada e condicionada à dependência.
Eram parte de uma “zona cinzenta entre a escravidão e a liberdade”, vivenciando uma existência marcada pela ambiguidade legal e social.







