Em princípio, penso ser difícil explicar em curtas linhas, talvez apenas ajude a entender a palavra, que vem dos tempos de antanho até os dias de hoje. Vejo três aspectos na questão: históricos e culturais, físico-acústicos, que tentam organizar e justificar os primeiros, e o mais crucial: a questão do gosto pessoal por onde pretendo terminar este breve texto. Dirijo-me tanto ao estudante que pode estar lendo sobre o já sabido – mas não custa acrescentar mais alguma coisa aqui e acolá – quanto ao leigo. Quem é estranho ao meio musical costuma ser muito mal orientado pela TV, que mais uma vez presta um desserviço à classe, com seus “especialistas” de concurso de cantores e programas de auditório a dizer: “você semitonou”. (Do saudoso Flávio Cavalcanti até Raul Gil). Semitom é a metade de um tom e fica, por exemplo, entre um dó e um ré, enorme espaço entre as duas notas. Portanto, semitonar não é desafinar, é errar as notas mesmo.
Vamos à Grécia antiga do físico, poeta, músico e dramaturgo Pitágoras (580/522 – 500/490 a.C.) cujas experiências consolidaram os princípios da acústica, parte de nosso limitado conhecimento humano. Pitágoras usava um artefato chamado monocórdio para demonstrar suas teorias. Como o nome diz, o artefato de uma só corda podia ser “tocado” com uma espécie de palheta ou vareta enquanto algum objeto, como uma pedra, era deslocado ao longo da corda para produzir sons. Com isso, ele conseguiu estabelecer relações matemáticas entre os sons de sua primitiva escala – por exemplo, a relação de um Lá para um outro Lá, imediatamente mais agudo, é de 1:2, ou seja, o segundo Lá tem o dobro da frequência do primeiro. Passaram-se séculos, e um físico alemão, Heinrich Hertz (1857-1894), definiu as relações de frequência, cuja unidade de medida leva seu nome. Quando se diz que o piano ou a orquestra afinam em 440 Hertz, refere-se às unidades de frequência classificadas pelo alemão. Aquela forquilhazinha metálica que os músicos batem e colocam no ouvido produzem um Lá 440 Hz para orientar a afinação de seu instrumento.
Complicado? Não, mais simples do que um jogo de damas. Acontece que, voltando a Pitágoras e Hertz, foi-se descobrindo que essas relações não se “casam” com o ouvido humano: tanto as do alemão quanto as do grego. Ou seja, por incrível que pareça, a física teima em não obedecer aos nossos ouvidos (e vice-versa): o ciclo de quintas de Pitágoras, faz a escala terminar com uma sobrazinha nada pequena: ao final, se começamos o ciclo em um Dó, onde deveríamos encontrar um Dó mais agudo, já não é nota de mesmo nome, é outra. Difícil entender? Vamos seguir: essa diferença final se chama “coma pitagórica” (homenagem ao pensador grego), e para resolvê-la e adaptá-la aos instrumentos o homem tentou várias formas de afinação, ajustes que possibilitassem aos músicos tocarem e cantarem em conjunto. Inventou-se, assim, um certo “temperamento desigual”, meio forçado, que possibilitava aos músicos tocarem juntos em duas tonalidades – imagine, apenas duas dentre as 24 utilizadas, sem falar nas modais, que são outra história. No período barroco usava-se tal “temperamento”, sistema adotado por Bach (daí o “Cravo Bem Temperado”, de 1722, série de peças em que o Mestre de Capela demonstra ser possível tocar seu “Cravo” e os Prelúdios e Fugas em 24 tonalidades maiores e menores). Pachelbel (1653-1706) também fez suas incursões no novo sistema, que acabou sendo adotado em todo o mundo ocidental (cuidado: na Índia e outros países do Oriente e Oriente Médio existem escalas diferentes, microtonais – como o nome diz, com partículas menores do que as de nosso sistema -, mas isso é assunto para um tratado em vários volumes, não um artigo). Mais tarde, surge um novo sistema, o “temperamento igual”, que permanece até hoje.
A história não resolveu de vez o conflito entre nosso ouvido “pitagórico” e o sistema proposto pela física acústica. Hoje, qualquer celular pode baixar um aplicativozinho para afinação de instrumentos (os “tuners”). Resolvido? Não, nunca. Pode até servir para orientar o estudante ou o músico, mas abre espaço para uma verdadeira confusão. É que o maldito aparelho trabalha medindo frequências, como nas ondas de Hertz, sempre nas proporções físicas de 1:2, para a oitava de Lá a Lá ou Dó a Dó, 2:3 para Dó ao Sol logo acima deste, e daí por diante. Pode até ser útil para o afinador de piano guiar-se no início, mas da metade do teclado em diante, para cima e para baixo, ele tem de confiar em seu ouvido de perito, fazendo ajustes sem o aparelho, para que, ao terminar, os agudos não soem horrivelmente desafinados para baixo e os graves igualmente para cima. Conclusão? A física não explica nem resolve a questão do ouvido humano, apenas explica o fenômeno físico. (lembro-me de uma frase de efeito, se não me engano, do comentarista de economia Joelmir Betting: “A única coisa que sobe igual ao índice de inflação é o índice de inflação”).
Finalizo na questão do gosto pessoal, como afirmei no início. Violinistas e cantores, entre outros, “desafinam”, especialmente em determinadas notas da escala que são “atraídas” por outras, o que agrega um “tempero” agradabilíssimo às suas interpretações. Os mitos Jasha Heifetz, Maria Callas e Pablo Casals “desafinavam” com extremo bom gosto, parte que era de suas performances memoráveis. Na música popular, ninguém desafinou tão bem como Bob Dylan, Mick Jagger, Janis Joplin, Billie Holiday… e por aqui Cazuza, Maria Bethânia – e Tom Jobim, mestre maior. O bom gosto antes de tudo.