Adeus, Jean Gerald. o Haiti não era aqui





“O Haiti é aqui”, frase de uma música do Caetano Veloso, serviu de título para um artigo que escrevi há uns anos sobre esse jovem haitiano. Refiz dois parágrafos para revisitar sua história, ainda cheia de mistérios para todos. Pois vamos a ela: foi por intermédio do oboísta Alex Klein, durante 20 anos solista da Sinfônica de Chicago, que vim a saber do Jean Gerald. Com 24 anos de idade, resolveu certo dia cabular aulas de música na Holy Trinity School de Porto Príncipe, capital do Haiti. Pois foi exatamente naquele dia que Jean perdeu ali cinco amigos, vitimados pelo absurdo terremoto de sete pontos na escala Richter que devastou o país. (Segunda-feira passada, 12 de janeiro, a tragédia completou cinco anos!). A casa da família restou intacta, mas quem o conhecia ficou sem saber, durante semanas, se ele teria sido morto na tragédia.

Eu o conhecia apenas por uma gravação. Mas foi com felicidade que pudemos receber o jovem oboísta, e ver pessoas daqui e dos EUA ajudando-o a superar aqueles momentos indizíveis, cruéis. Sim, a tragédia que vimos em cores na TV existiu mesmo, não foi “thriller” de horror: cortou fundo como navalha, queimou com ferro em brasa milhares de inocentes, esmagou idosos, crianças e jovens, ceifou talentos, amores e profissões.

Cumprida a etapa da aprovação no teste de admissão no Conservatório, passamos à busca do visto de estudante, condição para seu ingresso. Na Polícia Federal, seguindo as instruções que uma moça gentil havia nos dado ao telefone: bastaria ir lá, uma vez entregue a documentação, para sair com o visto tão desejado. Mas não. Jean teria de ir ao seu país de origem para pedir o visto! – liguei para um agente: mas qual embaixada? (“cara pálida”, quase completei, lembrando a velha piada). Ela está no chão! A nossa era um entulho disforme de tijolos e pedras!

Pois Jean logrou obter o visto, obteve lugar no alojamento, eu comprei o “enxoval” de quarto, com toalhas, edredon, roupa de cama, artigos de higiene, outros deram ajuda em dinheiro. Em pouco tempo, talentoso, ingressou na Banda Sinfônica e após na Orquestra Sinfônica, e foi indicado para receber temporariamente um dos instrumentos doados por um acordo de delação por sentença da Justiça Federal. O despacho exigia do aluno nunca ser reprovado, e que a propriedade (ele tinha apenas uma posse precária do oboé) se daria com a conclusão do curso. Jean foi matéria na imprensa, era muito dedicado e tinha um futuro brilhante pela frente. E deixou de lado seu velho oboé com rachadura e defeitos para receber um instrumento que valia ao preço de um carro popular.

Mas algo aconteceu nesse caminho. Jean estava confuso, muito devido à mistura da tradição de sua família, cristã, e os ritos haitianos, sincretismo que não se sabe exatamente quando começava um e quando terminava outro. Na verdade, era uma espécie de mesclagem, um “medley” religioso. Houve ajuda de nossa assistente social Lucilene Pedrina, encaminhamento a auxílio profissional, muita preocupação minha, apesar de Jean ser avesso a drogas e não bebia ou fumava. Mas precisava ser tratado. Perambulava pelas ruas, e quando reapareceu um dia mostrou-me que seu visto brasileiro estava vencido. Missão impossível, mexi até com o Ministério das Relações Exteriores, em busca de uma chance; porém, onde estaria Jean? Ele foi visto dormindo no metrô Barra Funda em SP, mas desapareceu, e meus esforços legais e políticos chegaram ao limite de minhas possibilidades. Tivemos de lavrar dois boletins de ocorrência no distrito policial: o doutor Ivan Rodrigues registrou o desaparecimento do jovem e do instrumento, pois eu também deveria, fiel depositário do oboé sob responsabilidade criminal, documentar e relatar a perda à Justiça Federal.

Tempos se passaram, e um pai de aluno achou na rede social uma foto de Jean Gerald no Acre, porta de entrada e saída de haitianos. Bem mais magro, Jean tocava oboé em um quintal, e com essa pista tratamos de procurá-lo. Sem visto, se pego por alguma autoridade seria preso e deportado. Pois foi via redes sociais que refizemos o contato com Jean. Depois, ele passou a assumir outra identidade na rede, um ícone no lugar da foto, e respondia por um apelido nativo (dialeto “créole”). O tempo passou, e um anjo da guarda, o francês Pierre Picard (hoje na Noruega), que então trabalhava no atelier de luteria de Paulo Gomes, em São Paulo, conseguiu trazer Jean de volta. Assim, foi feita a baixa na ocorrência de “desaparecido”, assim como na do oboé. Porém, Jean estava transtornado e decidido a retornar ao seu país, não suportava mais estar longe dos pais e de suas raízes. Um belo instrumento, uma carreira pela frente, bolsa de estudos, um quarto para si, tempo para estudar… tudo isso perdera o sentido. Foi em busca do que queria, e, via Acre e rotas conhecidas, chegou à República Dominicana, que divide a ilha caribenha com seu país. Ficamos aliviados por ele chegar vivo ao Haiti.

Mas o destino foi cruel com Jean: seu anjo da guarda Pierre Picard recebeu um e-mail de uma amiga norte-americana, Janet, que traduzo a seguir: “Eu escrevo com a notícia muito triste de que Jean Gerald faleceu por ferimentos sofridos em um incêndio. Os detalhes são muito obscuros mas, ao que tudo indica, ele sofreu fortíssimas queimaduras em seu quarto (na casa de Jeoboahm?). Foi levado a um médico, mas não havia “hospital sem fronteiras” (N. do A.: organização humanitária) e morreu ontem à tarde. Tão triste. Saudações, Janet. 27 de novembro de 2014”.