A sangria dos impostos em duas crises brasileiras





A Capitação (de “capita”, cabeça) foi um tributo instituído pela Coroa Portuguesa em 1734, para acabar com a “ociosidade dos negros e vadios em geral” (sic). Recaía sobre cada cabeça de escravo de qualquer raça, e mesmo homens “pobres ou vadios”. Porém, a Coroa achava pouco, e, conforme o marquês de Pombal (1699-1782), “ou se extinguia a Capitação ou Portugal perderia não só Minas, mas a própria Colônia”.

No final do século 18, o Brasil sofria com os abusos das autoridades e a cobrança de impostos, como a taxação do quinto (1/5) do ouro extraído, que já vinha desde 1534. Passaram a cobrar cem arrobas, algo como 1.500 quilos anuais sobre o ouro obtido. As tentativas de burla à cobrança eram severamente punidas e chegavam ao degredo, ou seja, uma espécie de deportação violenta para algum território português na África. Claro que, a uma certa altura do Ciclo do Ouro, a diminuição da quantidade do metal extraído e a consequente perda na arrecadação já despertavam a ira de Portugal.

Como o ouro passou a escassear e a cobrança não atingia mais tal enorme volume, soldados foram autorizados a invadir as casas do povo de uma região e retirar tudo o que fosse de algum valor. A Inconfidência Mineira de 1789 foi uma rebelião contra a Coroa Portuguesa e a cobrança de impostos e confiscos. Mas a extorsão oficial já vinha de antes, 1785, quando a fabricação de tecidos em todo o território da Colônia fora proibida, de forma a coibir a competição com as indústrias portuguesas.

Criar impostos, taxas e tributos sempre foi uma maneira de cobrir os monumentais gastos da máquina pública, e mesmo com as gritas contra supostas eventuais bitributações (cobranças em dobro) aqui e ali, eles persistem. O fantasma da CPMF, guardado insepulto no armário e vivo como nunca, surge no afã de arrecadar um volume enorme de recursos, 32 bilhões, pouco mais de 1% do Orçamento anual do país para 2016, de 3,05 trilhões.

Houve até dança de tributos e números às vésperas do badalado réveillon carioca, dia 29 de dezembro passado: o governo do Estado do Rio de Janeiro sancionou a lei 7.174/15, que aumenta a alíquota do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), que é cobrado sobre o bem herdado ou recebido em doação. Antes, eram 2,5%, depois, avançaram para 4%, e agora saltam para 4,5%, ou 5%, conforme o caso. Os preços dos imóveis no mercado do Rio são altíssimos, e até os de outras grandes cidades, como Niterói, Campos de Goytacazes, São Gonçalo e Duque de Caxias, além de estâncias como Petrópolis e Teresópolis. A sangria da Colônia se repete, e como disse um economista e pensador do passado, desta vez como farsa. Tomemos um exemplo prático, o do herdeiro de um imóvel no valor de R$ 1,3 mi: ele teria de desembolsar R$ 91 mil de ITCMD, já somados os 2% de Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), da esfera municipal, para ter direito ao bem recebido por direito. Pior ainda, o imposto devido pelo usufrutuário – que não é proprietário, mas tem “usos e frutos” de um imóvel por ele doado passou a 100% do valor, contra os 50% anteriores. Isso quer dizer também que, no caso de falecimento do doador que tem o usufruto do imóvel, o ônus recairá integralmente sobre os herdeiros, se o ITCMD já não tiver sido pago no ato da transmissão por doação em cartório. Recebe-se um imóvel, mas para tê-lo pagam-se impostos enormes.

Considerando a média do preço do metro quadrado na cidade do Rio, R$ 8.514, conforme pesquisa com quase 69 mil unidades feita pela Agente Imóvel, um apartamento básico de 100 m² valeria R$ 851 mil. E isso é a média. Já na região de Ipanema, onde o preço às vezes supera em muito os R$ 20 mil/metro, um apartamento de 150 m², metragem nada exuberante para a área, vai custar mais de R$ 3 milhões, e os impostos (ITCMD e ITBI) chegarão a 210 mil. Um apartamento antigo, daquele sobre pilotis, com 107m², a cinco quadras da praia, chega a custar 1.870 mil (244,78 mil de imposto), enquanto um na aprazível Vieira Souto, na orla da praia, coisa de 25 milhões (1,75 milhões para os mesmos tributos). Nessa profusão de siglas e percentuais crescentes, temos a tributação “causa mortis” no Rio recaindo também sobre direitos relativos a planos de previdência (PGBL) ou ainda o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL). A criação de novos impostos, tributos e taxas é uma bola de neve, já que, uma vez bem-sucedida, todos tendem a copiar, na frente o governo federal, campeão na prática da taxação. Uma vez aprovados por lei, a tentativa de contestação dos impostos poderá ser feita por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, um processo excessivamente moroso e complicado, dado o imenso acúmulo de ações no Supremo – coisa de uns bons anos. Sei que é cansativo, sim, ouvir falar de cifras, mas minha consciência de cidadão deve estar acima de minhas preferências pessoais.

Afastado o risco da violência física ao estilo da derrama colonial e suas invasões, o que vemos hoje é um enorme achatamento de todas as classes e reflexos no já alto custo de vida dos mais pobres, a reboque do aumento das alíquotas e mesmo criação de mais e mais impostos. Nossas casas são invadidas não pela derrubada de portas e intrusões como na época da Colônia, mas sim pela nossa entrada principal e sem boas-vindas ou pedir licença, contas da novena nossa de cada dia, esse rosário sem fim.