A outra crise da USP





Matéria recorrente na imprensa, o gasto com a folha de salários da USP chega a mais de 105% do orçamento, ou seja, há 5% negativos para manutenção e investimentos. É o sinal vermelho. E o reajuste salarial de 2,57% neste segundo semestre, resultou em muito pouco alívio para os professores, mesmo com nova sangria nos cofres uspianos. Como agravante, a sombra da previsível queda na arrecadação do ICMS em São Paulo em 2015 devido à crise econômica (as três públicas estaduais sobrevivem com 9,5% da arrecadação do Imposto sobre Consumo de Mercadorias e Serviços). Pior: em 2013 as contas só foram “fechadas” (sic) com créditos suplementares via decretos do governo: R$ 300 mi no primeiro semestre e 180 mi no segundo. São números impressionantes, mas é ainda muito pouco diante do orçamento de mais de 5 bi anuais e do enorme e crescente déficit. Resta confiarmos atentos nos que têm o conhecimento crítico e técnico e os que controlam a máquina, buscando melhores rumos para o futuro.

Isto dito e sabido, pretendo agora voltar-me a outra crise preocupante, o papel da USP na sociedade. A “Folha de São Paulo” publicou, há poucos dias, duas matérias reveladoras: 50% dos calouros da USP estão entre os 20% mais ricos do país (dados: USP), o que significa que a universidade tem sido ocupada cada vez mais pelos mais ricos, deixando os demais, cidadãos comuns e os mais pobres, com espaço mais encolhido ao sol da formação de excelência. Essas cifras formam uma curva que vem se acentuando nos últimos anos de maneira perceptível. Mas qual o porquê dessa maior concentração de ricos? Sem bola de cristal, atenção para duas siglas: primeiro, o Prouni (Programa Universidade para Todos), de 2005, que concede bolsas para alunos mais carentes no ensino superior privado (que recepciona 74% dos alunos de faculdades e universidades de todo o país). Por meio dele, é possível aos felizes contemplados (quase 10% dos alunos ingressantes) fazer um curso superior sem a maratona vestibular das chamadas “públicas”, facultando-os ainda estudar à noite para poder trabalhar de dia (pobre que é pobre, frise-se, tem que cavar seu sustento, papai não pode mantê-lo com seu parco salário). Esse vai-se tornando o maior golpe na supremacia hegemônica das chamadas públicas – e, justiça seja feita, informo que o Prouni foi criação, em 2005, do ex-ministro da educação Tarso Genro no primeiro governo Lula (quem acha que 100% de tudo foi certo ou errado em um ou outro governo ou é cego ou, como diria o Mário de Andrade, “uma reverendíssima besta”).

Novo fator a se agregar a essa crescente elitização da universidade “pública e gratuita”, mote da comunidade uspiana desde sempre, também foi revelado pela mesma “Folha” nesta segunda semana de outubro: em 2014 houve uma queda de 37,5% (dados oficiais) nas inscrições para a Fuvest (que realiza o exame vestibular) entre os alunos egressos de escolas públicas – em geral, vindos de classes menos favorecidas, que não podem pagar pelas caríssimas escolas particulares e cursinhos para ingressar nas públicas estaduais. Mas qual seria a razão desse “tombo” de quase 40%? Veja outra sigla: o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), programa que somente fica atrás do sistema chinês – comunista, aliás, mas cujo ensino não é gratuito, diga-se de passagem. Ainda outra vez, por justiça, o que é de César: o Enem começou a ser gestado a partir de 1998, pelo então ministro Paulo Renato de Souza, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Com o avanço do Enem, 53% (tendência crescente) das universidades públicas federais em 2014 já empregam o exame para seleção de candidatos, boa parte deles em vias de concluir o curso médio em escolas públicas. Prouni e Enem, juntos, já trazem algumas luzes sobre o visível escoamento de candidatos pobres e clara elitização da universidade pública (no caso aqui, a maior do país, a USP). Mas não é tudo: o Fies (programa do MEC) financia cursos a simpáticos juros de 3,4% ao ano, para que o aluno possa pagar com menor sacrifício seu estudo em uma particular; ironicamente, em prejuízo das públicas cada vez mais elitizadas e engordando cofres privados. Agora pela última vez, cabe a César o que lhe é de direito: o Fies foi criado em 1999, no mesmo governo Fernando Henrique, pelas mãos do ex-ministro Paulo Renato de Souza. O modelo do Fies guarda muitas semelhanças com o crédito universitário americano, assim como acontece entre o Enem brasileiro e o SAT (“Scholastic Aptitude Test”), criado em 1926. Com o resultado do SAT em mãos, o aluno tenta ingressar na universidade de sua escolha. Porém, para estudar economia em certa universidade média, a nota mínima exigida é, vamos supor, 7, mas com essa pontuação, independentemente de poder pagar a anuidade ou não, o aluno não pode sonhar com uma cadeira na Harvard, só para citar uma das maiores.

Concluindo, a universidade brasileira, mesmo pública e gratuita, vem se mostrando cada vez um nicho da mais elevada elite social, e esses 20% dos brasileiros mais ricos que hoje ocupam metade dos bancos escolares uspianos, nessa progressão, em breve ocuparão algo como 60% dos assentos universitários. Os mais pobres ou menos favorecidos custeiam com seus impostos o estudo gratuito dos mais ricos. Agora, cuidado: nem de longe entrei aqui no mérito da discussão-tabu, “a universidade paga”. Mas a crise a que me refiro precisa ser pensada sem bandeiras de quaisquer cores: ela é de todos nós, docentes, alunos e da comunidade que a sustenta.