
Mesmo com avanços pontuais, o Brasil segue enfrentando um problema histórico: as doenças transmitidas por água e alimentos continuam sendo uma das principais causas de internações e surtos em todas as regiões do país. Os números revelam um cenário que se repete, ano após ano, sem que o país consiga romper o ciclo.
Entre 2000 e 2021, foram 375.258 casos de Doenças Transmitidas por Água e Alimentos (DTHA), segundo análise do Journal of Water and Health baseada nos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Em 2023, outras 19.671 pessoas adoeceram e 31 morreram após consumir água ou alimentos contaminados.
A escalada continua. Apenas entre janeiro e agosto de 2025, os hospitais brasileiros atenderam 64 mil pessoas por intoxicação alimentar, o equivalente a 56,6% de todos os registros de 2024, segundo dados obtidos pela CBN junto ao Ministério da Saúde.
Para a médica veterinária e especialista em segurança dos alimentos Paula Eloize, o país enfrenta um problema estrutural.
“Melhoramos em algumas frentes, mas não no ritmo que a população precisa. Segurança dos alimentos é saúde pública, e ainda falhamos na base: água tratada, infraestrutura, educação sanitária e boas práticas de manipulação”, afirma.
Bactérias dominam os casos no Brasil
O estudo do Journal of Water and Health mostra que 70,56% dos surtos registrados no país foram causados por bactérias. A Escherichia coli, geralmente associada à água contaminada, lidera com quase 30% das ocorrências.
Outros agentes comuns incluem:
• Salmonella;
• Bacillus cereus;
• Clostridium;
• Shigella;
• Staphylococcus aureus.
Esses patógenos respondem juntos por 95% dos casos analisados.
Os riscos começam dentro de casa
Apesar da repercussão das interdições em restaurantes, a maioria das contaminações ocorre na rotina doméstica. A pesquisa publicada na PLOS ONE em 2024, com 1.043 participantes, mostra hábitos que aumentam o risco:
• 67,3% não lavam alimentos antes de armazenar;
• 64,9% utilizam a mesma tábua de corte para carne e vegetais;
• 52,7% higienizam folhas apenas com água;
• apenas 3% usam termômetro para verificar o ponto seguro das carnes.
Segundo Paula Eloize, esse conjunto de comportamentos cria um ambiente ideal para a proliferação de patógenos.
“Segurança dos alimentos depende de hábitos. O problema é que, mesmo sabendo o que fazer, muitos brasileiros não praticam”, explica.
Saneamento insuficiente amplia o risco
O desafio vai além da cozinha. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2022)mostram que o Brasil ainda vive um déficit grave de infraestrutura:
• 84,9% da população tem acesso à água tratada;
• 33 milhões de brasileiros vivem sem água potável;
• apenas 44,5% possuem esgoto tratado.
Para Paula, essa realidade afeta diretamente a segurança dos alimentos.
“Sem água segura, não há manipulação segura. A fiscalização faz sua parte, mas não consegue compensar o que falta de infraestrutura”, destaca.
A vigilância sanitária cumpre seu papel
Paula Eloize ressalta que a fiscalização é indispensável e que os agentes fazem o que precisa ser feito.
“A vigilância age para proteger vidas. Quando ela determina interdição, é porque existe risco real. Freezers enferrujados, alimentos vencidos, presença de insetos, temperaturas inadequadas. Muitas vezes, o consumidor não vê o que acontece na cozinha. A fiscalização vê”, afirma.
O que precisa mudar
Para Paula, a prevenção exige ação conjunta:
• investimento contínuo em saneamento;
• educação sanitária nas escolas;
• fiscalização técnica e constante;
• capacitação de manipuladores de alimentos;
• mudança de hábitos domésticos.
“Segurança dos alimentos não é um ato isolado. É um sistema. E, quando uma parte falha, toda a população fica vulnerável”, conclui.







