A crise na USP, sem choro nem vela





Diariamente, a imprensa tem publicado editoriais, artigos e opiniões sobre a atual crise na USP, maior universidade brasileira. A população de São Paulo, que a sustenta (além da Unesp e da Unicamp), quer saber onde vão parar os impostos que paga pela manutenção de seu maior centro de excelência. Eu, com 28 anos de carreira, sou observador desse processo que já ameaça o bom andamento da universidade. E coloco na balança a opinião do atual reitor, Marco Antonio Zago, há apenas quatro meses no cargo, do seu antecessor, Grandino Rodas, e a do José Goldemberg, por ser peça relevante na questão.

O reitor não decide sozinho. Há alguns atos que ele pode tomar para si, enquanto outros são praticamente decididos pelo Conselho Universitário, órgão máximo formado pela elite acadêmica. Agora, aos números, para que ao final deste artigo fique clara minha conclusão (guardadas as enormes proporções, escreve aqui alguém que possui 25 anos de experiência em administração escolar). A equação não é ilusão, é notório que os números impõem medidas das mais dolorosas e amargas, como a primeira que as reitorias insistem inevitável: o “reajuste zero”. Mas voltemos a 1988, ano da gloriosa “Constituição Cidadã”, da grande greve e do esboço de uma solução para  o impasse.

Naquele ano, estreei minha primeira greve geral das públicas do Estado. Ônibus levaram um grande número de pessoas para uma manifestação no entorno do Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do então governador, Orestes Quércia. A tropa da cavalaria da PM avançou sobre os manifestantes com seus animais enormes e brilhosos, os soldados exibindo os enormes cassetetes “Mec-Usaid & Abuseid”, ainda marcados dos tempos da ditadura. (Um famoso colunista social carioca, Ibrahim Sued, notório frasista, dizia: “cavalo não desce escada”. E nem sobe em árvore, pensei, escondendo-me atrás de um dos maiores e frondosos troncos, os cavalos trotando ao largo).

No Palácio, o então reitor José Goldemberg e Quércia acordaram sobre uma fatia no orçamento, para que as “três públicas” não ficassem à mercê do governador de plantão. Chegou-se a 8,5% da receita do ICMS, e, anos depois, assentou-se em 9,5%. Havia um consenso de que os gastos com pessoal não deveriam superar 80% da receita. O problema é que esse percentual de gastos foi crescendo e, sem controle, veio encostar em absurdos – contábil e financeiramente – quase 106%. Ou seja, 6% acima de todo o orçamento da USP esvai-se direto no pagamento de salários, um déficit que vai sangrar pesquisa, custeio e investimentos, além de beber o fundo de reserva da universidade – tão inesgotável quanto hoje parece a reserva de água da Cantareira. Esses R$ 300 mi a mais em um ano, mais um reajuste de iguais 6%, somam R$ 600 mi. O fundo, em 2013 da ordem de R$ 3,6 bi, desabou para R$ 2,3 bi em 2014. Em 2015, pelo andar da carruagem, cairia para R$ 1,7 bi. Luz vermelha.

Alguns grandes nomes da comunidade defendem uma auditoria independente, reforma nos estatutos e no modelo de gestão, repensando os moldes atuais. No Brasil, a imensa maioria dos formandos de hoje sai das particulares, e a USP perde docentes da melhor qualidade – os salários hoje são compensadores no mundo privado, sem que o docente tenha que pensar em pesquisa e extensão, que juntos com o ensino formam o chamado “tripé” da universidade pública. E o nível daquelas outras, é consenso, não tem a mesma excelência.

Leitor do “Diário Oficial”, vi que, além da vultosa soma anual repassada, o governo concedeu verbas a título de “manutenção e custeio”, em 2013, da ordem de R$ 480 milhões para a USP. Sem deixar de lamentar o já negado (e tão aguardado) reajuste salarial, uso meu conhecimento básico de administração obtido por experiência, para afirmar que no frigir dos ovos avançaremos cada vez mais sobre o fundo de reserva da universidade, fonte tão inesgotável quanto a água que resta no reservatório da Cantareira.

Aqui e ali, há conversas sobre alterações na composição dos aportes necessários ao sustento da universidade. A esquerda “pira”, como se diz, quando se fala em ensino pago. Blasfêmia! Quem levará essa pecha de pecador? “O que será / que andam suspirando pelas alcovas / que andam sussurrando em versos e trovas” (Chico)? Pode existir um modelo em que a grande maioria, que não pode pagar, possa estudar de graça e ainda receber ajuda financeira, sem maquiagem de cotas. E que o jovem abastado contribua com o que pode pagar, até um certo teto, o suficiente para bancar o equilíbrio. E isso é justiça social, a despeito das elites que usufruem da gratuidade e de um dos dogmas de fatia da antiga esquerda brasileira. A Receita Federal implantou em 1922 (há 92 anos!) alíquotas diferentes para o imposto, entre 8% e 20%, para todos os trabalhadores. Quase toda a população já nasceu sob essa tarifação, e hoje se trabalha com enorme faixa de isentos e 7,5%, 15%, 22,5% e  27,5%, conforme a faixa de renda. Por que ninguém levanta a bandeira contra? Porque é costume assimilado, como tudo. Sei que o assunto é tabu, e vai contra os motes dos movimentos da UNE desde a ditadura até aqueles anos 1980, gritos que ecoam até hoje: “ensino público e gratuito” (para os ricos especialmente, claro!) e “diretas, urgente, reitor e presidente”. Mesmo mudada a última parte, o bordão ficou. E sigo com Vandré, deixando minha modesta contribuição: “Se você não concordar / não posso me desculpar / não canto pra enganar / vou pegar minha viola / vou deixar você de lado / vou cantar noutro lugar”.