A cadência do Supremo





“Sei que vou morrer, não sei o dia / levarei saudades da Maria / sei que vou morrer, não sei a hora / levarei saudades da Aurora… / Quero morrer numa batucada de bamba / na cadência bonita do samba”, da linda canção (1962) do ilustre Ataulfo Alves (e Paulo Gesta). Bom para dançar, para cantar, é samba de terreiro, de quintal, de pagode (pagode de verdade, das tendas de lona – daí o nome, à moda dos telhados chineses – improvisadas nos subúrbios do Rio de Janeiro). A letra menciona uma palavra muito comum no samba: a cadência. Ela aqui tem o sentido de movimento rítmico, ginga, o requebro da cabrocha, o suingue do brasileiro. A “Cadência” do Ataulfo foi gravada pelo próprio e até de Elizete Cardoso a Cássia Eller. É uma pérola do repertório do samba.

Cadência também pode ser tradução do italiano “cadenza”, da mesma raiz latina, “cadere”: cair, ceder, agora significando o trecho escrito ou improvisado sobre o qual o solista demonstra suas habilidades virtuosísticas e musicais com grande liberdade: “ad libitum” e “a piacere” (em italiano), ou “à volonté” (francês) – indicando que o instrumentista ou cantor deverá se sentir livre para flutuar no tempo e reduzir ou estender notas e andamentos da forma que lhe convier, sem as “amarras” do tempo rígido. Donizetti escreveu várias cadências para o canto lírico (o ‘bel canto’), assim como seu compatriota Rossini, ambos expoentes da partitura de ópera. Na música instrumental, Beethoven escreveu uma cadência famosa no Concerto “Imperador”, para piano e orquestra, enquanto “Sheherazade”, de Rimsky-Korsakov, impregna o texto musical com várias cadências sensuais nos solos do violino. Também era comum grandes músicos ou compositores escreverem cadências para obras de outros autores, como fez Beethoven para o Concerto no 20 para piano de Mozart e Britten para o Concerto no 1 para violoncelo de Haydn (dedicada ao violoncelista Rostropovich), além da famosíssima cadência para o Concerto para Violino de Brahms composta por Joseph Joachim, um dos pais da escola russa do instrumento.

Ainda da mesma origem latina (cadere), temos na teoria musical (harmonia) uma série de cadências possíveis. No caso, elas podem terminar frases ou mesmo um movimento ou peça inteira. Mas essas cadências não são improvisos, como as anteriores – pelo contrário, são bastante bem definidas e independem do intérprete. A mais comum delas se chama autêntica: sai de um acorde que tem sentido de movimento (chamado dominante) para “resolver” na tônica, ou seja, no repouso da tonalidade. Os acordes construídos sobre cada grau da escala (dó-ré-mi, etc.) têm uma função clara ou dissimulada de repouso (tônica), movimento (subdominante) e tensão (dominante). Para simplificar, listarei a seguir as principais cadências, exemplificando-as.

Já falamos da cadência autêntica, que encontramos em grande parte do repertório popular e clássico, que sai do acorde de tensão (dominante) para o de repouso (tônica). A cadência completa vem de uma sequência mais longa, mas pode terminar como a autêntica. Já a cadência plagal (ou “clausula”, por ter sido comum na música religiosa do passado) vem do movimento (subdominante) para afinal resolver no repouso (tônica). A chamada imperfeita deixa o ouvinte em suspenso, pois termina com um acorde de tensão (dominante) no ar, sem resolvê-lo no repouso (tônica). Por fim, entre algumas outras, temos uma cadência chamada deceptiva, por frustrar o ouvinte, que espera o repouso, e o lança sobre um acorde inesperado, que substitui o acorde de tônica. Por isso, tal cadência é conhecida como deceptiva.

O Brasil assistiu durante longos meses ao maior e mais longo julgamento de uma ação penal (AP 470) de sua história. Nunca, nunca tanto se discutiu, se falou e se comentou sobre um julgamento pleno de citações, doutrinas, jurisprudências, hermenêutica, súmulas, direito greco-romano ou anglo-saxônico, tratados como o da Costa Rica, Declaração dos Direitos Humanos e tudo o mais com que a “tropa de elite” dos melhores criminalistas do país tenta convencer os julgadores. “O que será que será / que andam suspirando pelas alcovas / que andam sussurrando em versos e trovas / que andam combinando no breu das tocas / que anda nas cabeças, anda nas bocas / que andam acendendo velas nos becos / que estão falando alto pelos botecos…”, diz a linda música de Chico Buarque.

Nosso país, dizem, tem 200 milhões de técnicos de futebol, e hoje alguns milhões de magistrados formados na escola da vida. Expressões antes desconhecidas do grande público passaram a adentrar lares, bares e clubes: acórdãos, embargos de declaração ou infringentes, revisão penal e tudo o mais que a lei oferece ao cidadão muito bem abastado que pode pagar honorários de sete dígitos ou mais para fundamentar sua brilhante defesa nos debates em câmaras, cortes e tribunas superiores.

Voltando ao título deste artigo, proponho à reflexão o conceito musical que acabo de expor: a AP 470 termina em cadência autêntica, a mais esperada, a plagal, de movimento para o repouso, a imperfeita, que fica em suspensão, ou a deceptiva? Considere este texto como uma “obra aberta”, conceito delineado pelo filósofo e escritor italiano Umberto Eco (1932), título de uma publicação que analisa certa tendência da época, na arte moderna, que consistia em não concluir a obra de arte, mas deixar a decisão para o livre arbítrio (o liberum arbitrium) do leitor ou ouvinte. E a sinfonia continua.