Viver em um mundo “ideal” seria realmente maravilhoso. O problema é que isso não existe- até começando pelo fato de que o ideal para uns pode ser o avesso para outros. Até há pouco, isso era percebido pelas pessoas adultas, que minimamente se respeitavam em suas diferenças e, ademais, não duvidavam do óbvio.
O tal “viver em sociedade” nunca foi fácil, mas está ficando pior, dando a perceber que problemas caóticos esperam a todos no futuro. Antes, havia muito mais de resignação quanto a “encarar a realidade”; agora, não. Há a realidade “virtual”, onde, em se procurando, acha-se o “ideal” de cada um, por mais absurdo o seja.
Neste processo incivilizatório, por certo, a “verdade”, que antes tanto contribuiu com o desenvolvimento da humanidade, agora passa a ser inimiga, um “negócio chato” que, particularmente pela imprensa e pela ciência, fica só irritando ao insistir, por exemplo, que aquecimento global pode extinguir a humanidade, que o mundo é redondo etc., etc…
Não por acaso, em meio ao extremismo instigado nesse mundo alternativo, só pode aumentar o ódio a quem tem por ofício trabalhar e, portanto, incomodar com a realidade, com as informações factuais, como a ciência e a imprensa.
Um dos reflexos deste movimento sectário – terrível e que, sem dúvida, indica para um futuro de profunda ignorância, com potencial concreto para gerar o caos pela supremacia do delírio – está claro em estudo divulgado nesta semana.
O documento parte da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Basta observá-lo e concluir, por si mesmo, o tamanho da tempestade no horizonte:
“Durante o primeiro turno da campanha eleitoral no Brasil, a Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor) registrou mais de 44,2 mil ataques contra a imprensa em cerca de sete semanas de monitoramento das redes sociais X, Instagram e TikTok.
Em parceria com o Laboratório de Internet e Ciência de Dados (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mais de 450 contas de jornalistas, meios de comunicação e candidatos às prefeituras vêm sendo monitoradas desde o dia 15 de agosto, véspera do início oficial da campanha.
A análise semanal dos padrões de hostilidade contra a imprensa no meio digital mostrou que, após o bloqueio do X no país, o TikTok vem se consolidando como um espaço nocivo aos jornalistas.
Nas três primeiras semanas de acompanhamento, o X ocupava o primeiro lugar em número de ataques. Mais de 34,7 mil publicações, comentários ou menções que remetiam a algum tipo de violência ou discurso estigmatizante contra jornalistas ou meios de comunicação foram publicadas na plataforma.
Após o bloqueio da rede social no Brasil, a CDJor ampliou o escopo de monitoramento no Instagram e iniciou a análise de dados no TikTok, que apresentou registros alarmantes.
O TikTok assumiu a dianteira, com cerca de 4.400 ataques em cerca de 20 dias. Já no Instagram, foram captados mais de 4.800 ataques em sete semanas de monitoramento.
Os ataques variam de agressões diretas a jornalistas e veículos a um discurso estigmatizante contra a imprensa. Expressões como “mídia podre”, “jornalismo tendencioso”, “extrema imprensa”, “imprensa militante”, “jornalismo imparcial” e “imprensa vendida” são frequentemente usadas para descredibilizar profissionais e veículos.
Entre 15 de agosto e 6 de outubro, os jornalistas mais atacados nas redes sociais foram Carlos Tramontina (que mediou o debate do Flow entre candidatos à prefeitura de São Paulo), Josias de Souza (UOL), Pedro Duran Meletti (CNN Brasil), Andréia Sadi (GloboNews), Vera Magalhães (O Globo / CBN), Diego Sarza (UOL), André Trigueiro (GloboNews), Leonardo Sakamoto (UOL), José Roberto de Toledo (UOL) e Daniela Lima (GloboNews).
Já os meios de comunicação que mais receberam menções ou comentários hostis foram GloboNews, UOL, Metrópoles, G1, CNN, O Globo, Folha de S. Paulo, Rede Globo, O Estado de S. Paulo e Veja.
A hashtag mais utilizada no período foi #globolixo, seguida de outras ligadas ao mesmo grupo. A expressão aparece com frequência inclusive em posts direcionados a outros meios de comunicação, mostrando que se tornou um termo de hostilização ao jornalismo em geral.
Os principais perfis agressores que postaram mensagens, fizeram comentários ou curtiram conteúdos agressivos à imprensa no primeiro turno se apresentam como conservadores de direita e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, as principais ondas de violência contra jornalistas e meios de comunicação na campanha para o primeiro turno se formaram pela ação de eleitores do candidato Pablo Marçal (PRTB), que disputou a prefeitura de São Paulo.
Semanalmente, postagens jornalísticas trazendo fatos e análises da disputa paulista que envolviam Marçal recebiam enxurradas de ataques de seus seguidores e apoiadores.
Jornalistas que protagonizaram episódios envolvendo o candidato — seja durante um debate televisionado, uma sabatina ou uma atividade de campanha — também viraram alvos diretos.
Um aspecto marcante na maioria das postagens ofensivas vindo dos apoiadores de Marçal era uma tentativa de vinculação do trabalho da imprensa com partidos de esquerda, visando sua descredibilização.
Outra expressão presente nos ataques foi “caiu o pix”, que insinua que jornalistas e veículos são comprados e, portanto, sem qualquer independência para realizar seu trabalho.
Além da análise das mídias digitais, as organizações da CDJor atuaram para monitorar episódios de ataques offline à imprensa em todo o país. Durante os meses que antecederam o primeiro turno, foram registradas 14 denúncias de ataques a jornalistas, entre agressões físicas, verbais, interpelações policiais, processos judiciais abusivos e campanhas de estigmatização.
Boa parte das agressões aconteceu durante comícios ou entrevistas a candidatos, que se ofenderam com questionamentos feitos pelos profissionais. Mas não só.
No dia 30 de setembro, a jornalista Paula Araújo, do Conexão GloboNews, sofreu uma agressão momentos antes de entrar ao vivo. O incidente ocorreu em frente à sede da Globo, na zona sul de São Paulo, enquanto ela se preparava para cobrir as eleições na capital.
A agressora tentou, sem sucesso, atacá-la com o tripé da câmera. Logo depois, desferiu um tapa na repórter e, ao deixar o local, acusou a emissora de perseguir Bolsonaro e seus apoiadores, usando a frase “Globo lixo”.
A CDJor seguirá monitorando os ataques online e offline à imprensa até o segundo turno das eleições. Ao final deste período, será publicado um relatório compilando casos, análises sobre as tendências das violências monitoradas e recomendações ao Estado brasileiro e às plataformas digitais, com a intenção de subsidiar futuras políticas públicas e iniciativas legais contra a violência contra jornalistas.
A Coalizão em Defesa do Jornalismo é uma articulação de 11 organizações da sociedade civil em defesa da liberdade de imprensa, tendo como principais temas de atuação: proteção e segurança de comunicadores e jornalistas, sustentabilidade do jornalismo e integridade do espaço informacional.”