Nomes, sobrenomes e livre associação





A livre associação foi um dos grandes achados de Freud em seu método psicanalítico. Não sou da área, apenas aficionado pela leitura do assunto, mas posso falar informalmente para abrir este texto. Freud passou a se utilizar dos sonhos e da livre associação (“via regia”, em latim, ou via real) em suas sessões de psicanálise. Trata-se de um meio natural e menos agressivo e intromissor do que a hipnose de seu colega Breuer. Ela consiste em fazer o paciente ouvir uma palavra e dizer imediatamente outra, sem deixar seu consciente inibir o jogo que leva a revelações do inconsciente.

Na livre associação, a cada palavra dada o paciente tem de dizer outra diferente, no popular “o que der na telha”. Por exemplo, na sequência imaginária de palavras a seguir, a primeira é dita pelo psicanalista, enquanto a segunda pelo paciente, sem pensar: carro/pai, água/praia, beijo/mãe, flor/freio. Tudo anotado em sua prancheta, o psicanalista já teria, nessa curta série fictícia de palavras, algumas ligações possíveis, como “carro/pai” associando o primeiro à virilidade de seu pai. Já “carinho/mãe” revela a imagem da mãe que conforta, como na frase bíblica “junto àquele que me conforta” (do latim “omni possum in eo qui me confortat”, em Filipenses 4:13, com frequência erroneamente traduzida para “naquele que me fortalece”). Já “flor/freio” foi um diferencial que imaginei, em que a associação do suposto paciente vem pela consoante “f” (labiodental, em gramática, pois ela é produzida pelos dentes superiores contra o lábio inferior). Mas é possível supor que “freio” é algo que pode conter a “flor”, associada ao amor. Essa seria minha interpretação pessoal.

Dia desses chamei a atenção de um colega para um e-mail que recebi do The New England Conservatory, de Boston (EUA), onde tive a oportunidade de me formar. Era um simples e criativo anúncio da abertura da temporada de 2016-2017 (no exterior, ano letivo e temporadas musicais sempre começam na primavera) da fabulosa orquestra sinfônica do NEC: “Wolfgang, Gustav, Johann Sebastian, Sergei e Franz encontram Cindy, Ellen, Augusta, Anna, Caroline, Jennifer e Kati”. Simplesmente usaram os prenomes de alguns dos mais famosos compositores para juntá-los aos de mulheres compositoras, nessa temporada junto aos grandes mestres.

Mostrei o anúncio ao colega Antonio Ribeiro, e imediatamente começamos uma associação: Wolfgang é o prenome de Mozart; Gustav, de Mahler. Poderia até ser Gustav Holst, por exemplo, autor de “Os Planetas”, mas a primeira associação foi a mais óbvia para nós. Se eu tivesse acabado de ouvir “Os Planetas”, talvez me viesse à mente Gustav Holst. Johann Sebastian é Bach, claro, e de imediato o associei ao nome de um barzinho em Belo Horizonte que se chamava João Sebastião Bar, lembrança de adolescente. Já Sergei me lembrou Sergei Koussevitzky, contrabaixista e regente da Sinfônica de Boston, professor do nosso grande maestro Eleazar de Carvalho, falecido há 20 anos. Porém, veio meu consciente e organizou tudo: Sergei Koussevitzky nunca foi um compositor como os outros dois xarás, e concluí que deveria ser Sergei Prokofiev, sinfonista e autor de “Tenente Kije”, peça que tem um belo solo de contrabaixo, meu instrumento. Já meu colega pensou em Sergei Rachmaninoff – não por acaso, autor de quatro dificílimos concertos e uma rapsódia para piano e orquestra. Claro, hoje compositor, meu colega começou na música ao piano, fazendo-o seu instrumento, daí sua associação pessoal. Já Franz é prenome de compositores como Franz Schubert (minha escolha), grande sinfonista, mas meu colega optou por Franz Liszt, autor de obras virtuosísticas para piano e um dos maiores pianistas da história.

Passamos a falar de nomes e sobrenomes, seus significados em seus idiomas de origem e quem ou o que nos lembram. Alemães levam frequentemente sobrenomes de profissões, que no passado ajudavam a identificar as pessoas: O sobrenome Gustav Mahler significa pintor; Schumacher, o piloto, é o artesão fabricante de sapatos; Zimmermann, da família de músicos, carpinteiro. Em italiano, durante muito tempo, criava-se um sobrenome a partir da origem do cidadão: Giovanni da Palestrina, compositor, Gasparo da Salò, artesão fabricante de violinos antecessor de Stradivarius, o gênio Leonardo da Vinci, cujos sobrenomes identificam suas origens.

Daí passamos a uma rápida brincadeira com outros nomes, como Alfred, que a meu colega lembrou Hitchcock, o grande cineasta do suspense. Concordei, mas depois pensei, em Albert (troquei-o por Alfred) Speer, o arquiteto nazista que fazia dos comícios de Hitler grandiosos espetáculos cênicos (curioso: li recentemente sobre Alfred Albert White, tripulante sobrevivente do Titanic, que depois do naufrágio voltou a trabalhar em navios, até sua morte. Não foi por acaso meu lapso, então). Prossegui: Heitor, claro, é o nosso Villa-Lobos, mas para mim também Heitor Coutinho, que pintou um retrato de meu pai, que ficava na sala de jantar, ou o assassino de Dana de Teffé, Leopoldo Heitor, matéria recente de jornal pelos 55 anos do crime. A memória de cada um é íntima, exclusiva, e só dele. Por isso temos gostos diferentes para música, por associação e memória, para lugares, o que lembra sua família, criação ou onde se sentiu bem, algo que tenha marcado sua vida. O nosso dia a dia é um mundo de associações que escapa à nossa consciência, mas que merecem ser pensadas quando em conflito, ansiedade ou dúvida, com o valioso auxílio de nossa razão.