Em 1792, um ano após a morte de Mozart, Ludwig Van Beethoven muda-se para Viena. A cidade, após a partida do gênio de Salzburg, acolheu o mestre de Bonn com a mesma cordialidade, apesar de ele ser apenas um jovem talento, mas promissor aos 21 anos. Foi aceito como aluno de Joseph Haydn, entre outros, que lhe proporcionou amplas perspectivas de crescimento musical. Cinco anos mais tarde, foi constatada uma doença que lhe causou uma surdez degenerativa, e com a qual deveria conviver e sofrer até o fim da vida. Dez anos depois de sua chegada à capital da música europeia e duas sinfonias após, começa a escrever a sua “Sinfonia nº 3”, “Eroica”, monumento musical que foi o grande marco do novo caminho que haveria de trilhar.
O problema maior de Beethoven era o gênio, a personalidade impossível de se lidar. Seu grande amigo Wolfgang von Goethe achava-o um sujeito absolutamente intratável, e o perfil mal visto dava a Beethoven a fama de pessoa conturbada e geradora de problemas. Suas várias mudanças deveram-se quase sempre a crises com vizinhos e senhorios, seu comportamento indomável era o mote das frequentes mudanças de residência. Seu fortepiano, um novo instrumento de maior volume do que o cravo, era mais um problema a acrescentar – som, aliás, é motivo que ainda suscita discussões e crises para músicos em todos os lugares do mundo: a perturbação do silêncio (já eu pagaria para ter um vizinho como ele). As casas, com seus pisos de madeira, tinham frestas entre as tábuas por onde escapava o som que iria incomodar o vizinho de cima, de baixo ou de parede, que deixavam também vazar algumas sobras da água que Beethoven usava, em jarras, para refrescar sua cabeça e mãos sempre fervilhantes.
Heiligenstadt, subdistrito de Viena com vestígios da ocupação romana, foi o destino escolhido para o compositor tratar-se dos males trazidos pela depressão, a tortura da surdez crescente, além dos óbvios sinais de algum tipo precoce de demência. Em 1802 Beethoven para lá se mudou, seguindo orientação médica. No final daquele mesmo ano, redige um dos documentos mais famosos da história, depois conhecido como “O Testamento de Heilingenstadt”, escrito aos seus irmãos Carl e Johann, embora o nome do segundo tenha sumido do papel – com certeza, por conta de algum desentendimento familiar, como de costume. Na verdade, esse testamento ia muito além, era um desabafo insano sobre sua doença, a falta de compreensão dos médicos e um depoimento sobre suas intenções de suicidar-se – tragédia que nunca acontecera, fruto que era de seus delírios em espiral, sua tempestade interior. Apesar de ter sido escrita em 1802, a carta revela que as ameaças de terminar com a própria vida eram na verdade um desabafo para si mesmo, apesar de que, na época, o documento também pudesse produzir efeitos legais com relação aos bens que descrevera. O testamento foi descoberto somente 25 anos depois, após a morte de Beethoven, e permanece como um depoimento de inestimável valor histórico.
Mesmo após o isolamento em Heilingenstadt, Viena era um local onde a fama abria ao compositor todas as portas, apesar de seus problemas de convívio e intolerância. Seu pessimismo era outra marca, e bem o mostra o dia em que, ao lado de seu grande amigo Goethe, passeando entre os belos e muito bem cuidados arbustos e sebes da capital austríaca, resmungou que aquilo tudo lhe parecia um bando de carneiros mortos. Um dia, em um sarau na casa do conde Browne, Beethoven apresentava seu aluno Ries ao pianoforte quando, diante do falatório do Conde e convivas, que se refestelavam fartamente, foi-se embora resmungando que não tocaria para porcos. Certa vez, de braços com seu amigo de sempre, Goethe, viu a multidão e seu companheiro curvarem-se em honra à imperatriz da Áustria, Maria Ludovica, cuja carruagem se aproximava. Mas Beethoven não deu trela e continuou seu passo, repreendendo Goethe pela subserviência. Conforme teria contado Beethoven depois, em sua própria versão, a carruagem parou para que ele pudesse receber a atenção da soberana e suas mais entusiasmadas deferências. O compositor já se confundia com tudo e a todos, mas a cidade o tinha como grande trunfo.
Pois Beethoven continuou com suas mudanças, sempre complicadas, uma espécie de sina interminável. Não lhe importavam muito as coisas materiais, além do fortepiano, que era uma das razões maiores de sua vida, instrumento no qual tocava e improvisava como ninguém, e sobre ele esboçava suas obras cada vez mais complexas e grandiosas, culminando na “Sinfonia nº 9” – ironicamente, para um deprimido, a “Ode à Alegria”, cujo último movimento traz um coral que entoa o lindo poema homônimo de Schiller. Apego a lugares e coisas não eram afeitos ao seu estilo, mas todos sabiam que ali, naquela cidade, estava um dos maiores gênios que o mundo já conhecera, e isso lhes era motivo de júbilo. De mudança em mudança, era um misto de lenda e malvisto cidadão, embora a certa altura já mais bem tolerado em função de sua glória e seu nome, que ajudaram a guindar Viena ao patamar de centro da música clássica e pré-romântica.
Um dia, um velho amigo por acaso o encontrou, e disse que andava procurando-o desesperadamente, queria corresponder-se com ele, mas não lhe sabia o endereço e ninguém conseguia informá-lo ao certo. Perguntou-lhe para onde deveria endereçar suas cartas, para ter certeza. Disse-lhe o compositor: “Escreva apenas: Beethoven, Viena”.