“As Palavras” é o título de um livro sobre escritos de Clarice Lispector – pensamentos, bilhetes e mensagens compilados por Roberto Corrêa dos Santos. Há um subtítulo, a seguir, “nada tem a ver com sensações”, e ainda o que eu chamaria sub-subtítulo, “palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas, fugazes, extremas”, bela reflexão da escritora brasileira nascida na Ucrânia. No livro, frases e parágrafos foram agrupados por temas, perpassados por um fio condutor. É impossível não achar em Clarice alguns mestres da filosofia, cujos textos ela devorava com facilidade. São associações inevitáveis e visíveis, se não nas palavras (como bem as definiu a autora), certamente nas sensações!
Salta aos olhos, logo na primeira página, uma gema preciosa que poderia ser lapidada por uma eternidade – esta última, palavra que também era um dos temas caros para Clarice. “Existe por acaso um número que não é nada? Que é menos que zero? Que começa no que nunca começou porque sempre era? E era antes e de sempre?”.
Convido o leitor a refletir comigo: impossível não lembrar João 1:1,2, concorda? “1. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. 2. Ele estava no princípio com Deus”. E a Torá judaica de Clarice traz a mesmíssima ideia: Bereshit (Gênesis), 1.1: “No princípio, Deus criou os céus e a Terra”. Então, Deus já existia desde sempre, e era, como na leitura cristã, o Verbo. A esse “ter sempre existido” Clarice chama Zero, “que nunca começou porque sempre era” (escrevi zero com Z maiúsculo, lapso que o leitor há de compreender). A equação de Clarice era Zero = Deus = Eternidade (“na eternidade não existe o tempo”, disse em outra observação). Esse Zero não era nem será, porque para Clarice “era antes e de sempre”. A origem judaica era arraigada em sua mente conflituosa! Veja “O Ser e o Nada” (1943), de Jean-Paul Sartre, discurso sobre o que transcende, vai além dos limites (influenciado pelo pensador alemão Heidegger, de “Ser e Tempo”), em convergências e divergências: Sartre pensava no existencialismo, o “ser para não deixar de ser”. (Dualidades à sua maneira Gilberto Gil cantou, com simplicidade e singeleza baianas: “É sempre bom lembrar / que um copo vazio / está cheio de ar”). Vamos seguir, leitor?
Meu caro, tudo isso pode parecer complicado, mas não é tanto. As palavras talvez soem um pouco difíceis porque, lembra Clarice, são “pedras duras”, mas é possível senti-las – mesmo que as sensações sejam fugazes: fugitivas, passageiras, enquanto as palavras permanecem (em latim, “verba volant scripta manent”, palavras ‘faladas’ voam, as escritas permanecem”). É preciso conhecer o drama da perseguição aos judeus, a fuga com a família, a vida nômade, a imersão profunda na filosofia, que faz Clarice, como indivíduo, dissolver-se no universal. Aquele “Zero” não é um simples nada, a negação, apesar de Clarice também ter se embebido nesse tipo de leitura, da “existência que nada vale”. O judaísmo umbilical, penso, talvez lhe tenha servido de âncora (em meio à leitura de temas como o pessimismo de Schopenhauer e o niilismo de Nietzsche (“nihil”: nada, em latim).
Veja você que me detive sobre apenas um breve parágrafo, mas zarpamos para longe por tantas rotas na busca de compreendê-lo, quando teria bastado senti-lo. Em ainda outra frase, Clarice se mostra longe de ser uma derrotada: “Do zero ao infinito vou caminhando sem parar”. Ela não se anula, transita livre e solta entre o ser e o nada, que não lhe impõem limites.
O mal do mundo moderno é que o advento da informática e o “moderno” ensino escolar criam seres binários, zero ou um, esse ou aquele. Quando perguntamos a alguém as horas, respondem-nos, olhando o relógio: “São dezessete e cinquenta e sete, senhor”. Que precisão espetacular! Há não muito tempo, diriam “são quase seis da tarde, senhor”, sem as amarras dessa suspeita precisão (que provavelmente está desajustada!). Sou esquerda ou direita? Mas quem é uma coisa e quem é outra? Ora, se sou uma quem não é como eu é outra. Usam-se palavras, sem saber o que significam, mas fica “bonito na fita”. Outra variante desse conceito simplificador são as provas de múltipla escolha, que mostram mais uma vez o vício binário: se uma resposta está certa, as demais estão erradas. Basta saber ou adivinhar a correta. Ou eliminar as erradas.
Agora preciso encerrar, e o faço abrindo espaço para agradecer o livro, gentil presente do amigo e maestro Dario Sotelo. E se o leitor chegou até aqui, muito obrigado pela companhia. Porém, se lhe trouxe mais dúvidas do que certezas, sinceramente acho ótimo, mas não fui eu, agradeça à Clarice. Se lhe deu trabalho ler ou ter que reler este texto, também o tive ao escrevê-lo, e revisá-lo várias outras. O importante é que uma leitura não seja somente um ocasional passatempo ou meros títulos de jornais, assuntos para bate-papos no fim de semana. Veja que para este artigo usei apenas um breve parágrafo e duas curtas frases de Clarice, mas ainda assim conseguiria prosseguir sem parar! Ler é um aprendizado constante, um convite à reflexão! E se ao escrever este artigo tive de pensar em significados, raízes, origens, e pesquisar, foi para que minhas palavras não parecessem pedras tão mortas quanto as que Clarice descreveu. Buscar o conhecimento, por si, não traz às pessoas a felicidade. Mas, com certeza, lhes dá os meios de se preparar com Aquele que nos conforta (Filipenses, 4:13), quando topamos com as tais pedras no meio do caminho.