A música contra o crime





No calor das polêmicas sobre responsabilidade criminal e assuntos correlatos, nesta segunda-feira (27/07) um assunto me caiu de súbito como luva para um artigo. Aconteceu no Rio Grande do Sul um fato ao qual me reportarei no final, após relatar coisas do passado e minha experiência de 25 anos dirigindo escolas de música. Pois foi essa vivência (entre outras) que me levou a refletir várias vezes sobre a não interação entre violência e um ambiente musical sadio. Falo não apenas de infrações penais, refiro-me também à convivência social diferenciada dos que vivem a música.

Nesses longos anos, não me lembro de ter visto uma vez sequer um caso de violência entre alunos, enquanto hoje, fora do ambiente musical, episódios grotescos são cada vez mais frequentes nas escolas, na falta de limites. A sociedade está cada vez mais permissiva quanto à questão da indisciplina e indiferente aos abusos; moralmente, ao inverso, está cada vez mais retrógrada, uma amarga contradição entre dois lados de uma mesma moeda. São frequentes os noticiários da TV ou postagens nas redes sociais mostrando agressões físicas violentas até contra professores! Disciplina e hierarquia parecem letra morta nessa “nova ordem” obtusa de perigosas consequências.

Em música, não se conversa enquanto se toca, ela é som e pausa, elementos indissociáveis. E o silêncio interior lhe é parte fundamental, é a alma do fazer música, seja no estudo, seja no palco. Quando se toca, tem-se que estar envolvido em apenas uma coisa: o som, em estado de contemplação quase monástica.

Corto aqui para lembrar o episódio do “Evangelho Segundo Lucas” (10:40), em que Maria contemplava Cristo quando Marta, irmã dela, reclamou ao Senhor da falta de ajuda nos afazeres domésticos. Jesus respondeu: “Maria escolheu a parte certa, que nunca lhe será tomada”, conforme explicou-me um doutor em teologia da Universidade de Chicago, versado nas línguas bíblicas – a tradução “vulgata” (popular) “Maria escolheu a melhor parte” parece acomodação. A contemplação é exercício espiritual milenar que ressurge no mundo cristão em “The Cloud of Unknowing” (“A Nuvem do Não Saber”, outro título em português não bem traduzido). O escrito original, de um monge beneditino inglês anônimo do séc. 14, é na verdade um guia para iniciação na meditação e no caminho a ser percorrido rumo ao estágio mais próximo do Altíssimo, a contemplação em transcendência terrena, que nada difere do que sempre foi praticado pelos monges budistas tibetanos.

A boa música exige concentração, e com o progresso do artista, um grau crescente de alta introspecção. Ao topo do “Gradus ad Parnassum” (degraus, ou passos, para a perfeição) somente chegam os grandes músicos, o domínio dessa espiritualidade aliado a uma técnica adquirida com rigor quase canônico.

No início de 2007, participei de um seminário em São Paulo que avaliaria o que vinha sendo produzido com os milhares de jovens do Projeto Guri, um projeto social como fim e musical como meio, especialmente em áreas mais pobres na capital e no interior. Lembro-me de ter trazido o músico Sidney Mattos, que havia ido parar na França depois de ter participado do GUM (Grupo Universitário de Música) de Gonzaguinha, Ivan Lins e outros estudantes, ocasião em que o conheci. Sidney ficou paraplégico após uma cirurgia na coluna, e hoje se dedica a uma ONG que trabalha com jovens em uma favela carioca. Nossas palestras e reuniões com orientadores do Guri foram muito proveitosas – não apenas pelo que pudemos acrescentar-lhes, mas também pelo que aprendemos sobre o papel da música nos segmentos mais carentes da sociedade. Impressionou-me de maneira especial o depoimento de pessoas que trabalhavam com jovens internos do “Casa” (antiga Febem). Nas rebeliões, colchões foram queimados e até mortes aconteceram, mas uma coisa nos marcou: a sala de instrumentos era sagrada, ninguém depredava, era o símbolo do acesso à liberdade via conquista interior. A música lhes servia como elemento mágico! Salto mais para trás: nos anos 1970, toquei com uma big-band no Presídio Frei Caneca, no Rio (construído em 1850, implodido em 2010). Auditório abarrotado, perguntei a um dos policiais se havia perigo de uma rebelião. Calmo, ele sorriu e respondeu que não, nas apresentações musicais os presos se transformavam.

Costurando aqui o primeiro parágrafo deste texto, há dias uma reportagem na TV narrou o caso do juiz Dalmir Franklin de Júnior, de Passo Fundo, no RS, musicista amador na juventude que passou a tirar a toga depois do expediente para aplicar sua experiência musical junto aos próprios jovens por ele mesmo condenados na Vara da Infância e da Juventude: com a ajuda do músico Marcelo Pimentel, o magistrado, baixo elétrico nas mãos e um microfone, tocou acompanhado pela Banda de Percussão Liberdade, formada por jovens apenados. O comentário da promotora local foi sábio: “Todos são iguais perante a música”, e isso pode ser interpretado como uma comunhão entre a Justiça e infratores que ela mesma condena. Os depoimentos daqueles internos e dos que já estavam livres após cumprirem sua pena soaram quase em uma só voz, ilustrando o achado da representante do Ministério Público: “Todos são iguais perante a música”. Pois se “todos são iguais perante a lei”, conforme reza o artigo 5o da Constituição, também o devem ser na vida espiritual os que através da música se elevam e se iluminam. A música liberta!