Repercutiu muito nas redes sociais o falecimento de uma estrela de primeira grandeza da música, o “bluesman” B. B. King (1925-2015), que suscitou comentários de todos os tipos. Um deles, logo chamou minha atenção, e se referia ao início de seu aprendizado musical, cantando gospel (de God spell, palavra de Deus) na Igreja Batista de Elkhorn, na sua Mississipi natal (favor não confundir gospel com certo pop de fundo religioso em moda no Brasil). King começou a aprender guitarra com Bukka White em ambiente religioso. Já músico promissor, seguiu com o mestre para Memphis, Tennessee, iniciando uma carreira que o levou ao posto de maior guitarrista de blues de todos os tempos. Não sentia o lado “deprê” do blues, da origem lamentosa dos campos de algodão do sul norte-americano – a chamada depressão pós-parto é conhecida como “blues period”. Pois King tocava blues e não se dizia triste, era um homem feliz.
Alguém mencionou dois outros grandes nomes de músicos surgidos nas igrejas batistas negras norte-americanas. Não há resposta conclusiva estatisticamente, mas é bastante palpável e alguns bons exemplos são suficientes. A tradição luterana do emprego da música nos cultos é uma virtude pela qual passaram alguns dos grandes nomes da história, como J. S. Bach (1685-1750), formado na escola de Eisenach, em Leipzig, onde, dois séculos antes, formou-se o próprio Martinho Lutero (1483-1546), na rígida disciplina escolar que incluía sólida formação musical, latim, prosódia, história, literatura e ciências. Ao chegarem os colonos aos EUA, oriundos de diversas regiões do Reino Unido, as igrejas se disseminaram conforme a origem de cada grupo. Enquanto Massachusetts, região da chamada New England e suas vilas com nomes de cidades inglesas, foi terra dos ultraconservadores puritans e quakers; em outras, como na Mississipi de King, o luteranismo tradicional era o esteio religioso. Lá, com os escravos às plantações de algodão, os cantos de lamentos dos negros, chamados blues, começaram a se adaptar à tradição religiosa europeia, trazida pelos colonos, e foram aos poucos adquirindo vida e personalidade próprias. Para não estender esta introdução, passo a alguns nomes que bem demonstram o aprendizado musical da melhor qualidade dessas comunidades norte-americanas.
Podemos começar por alguns ícones do jazz e do blues, como Ella Fitzgerald (1917-1996), nascida na Virginia e depois transferida para Yonkers, NY. Seus estudos de piano e canto começaram nos cultos da Igreja Episcopal Metodista Africana Bethany. Partiu para carreira solo e entrou para a história do jazz. Outro mito, como ela, Aretha Franklin (1942), começou como aluna de canto gospel na igreja de seu pai, o ministro C. L. Franklin, e ainda jovem lançou-se na carreira profissional, tornando-se uma das maiores estrelas do jazz. Outro ícone, Dione Warwick (1940), começou na música na Igreja Batista Nova Esperança, na sua New Jersey natal. Outra grande diva, uma das mais cultuadas dos últimos tempos, Whitney Houston (1963-2012), também de New Jersey e falecida precocemente, teve seu aprendizado de piano e canto gospel na mesma igreja de Warwick, e, ainda adolescente, tornou-se solista do coro gospel de sua comunidade. O virtuose Winton Marsalis (1961), trompetista, compositor, professor, com trânsito no jazz e na melhor música clássica, começou na Igreja Batista de Fairview, da sua New Orleans natal, terra da tradição do Mardi Gras e das raízes do jazz.
A lista de cantores e instrumentistas negros que se iniciaram na música das igrejas batistas é eclética: Marian Anderson (1897-1993), a maior contralto lírico, era dona de voz tão especial que descia ao registro de barítono masculino, e não o trivial mezzo-soprano no registro grave fazendo de contralto. A grande soprano Jessie Norman (1945) iniciou-se em música aos quatro anos de idade na Igreja Batista Monte Calvário. Temos ainda a bostoniana Donna Summer (1948-2012), Mahalia Jackson (1911-1972), “a rainha do gospel”, o pioneiro do rock’n’roll Chuck Berry (1926) e o grande cantor de soul Otis Redding, Jr., (1941-1967), entre outros. Na oratória, no improviso, também se destacaram grandes nomes como Martin Luther King, Jr. (nascido 1929 e assassinado em 1968), o maior líder do movimento libertador negro do jugo do poder branco americano, seguido pelo também reverendo Jesse Jackson (1941), que chegou a balançar a indicação do Partido Democrata para a presidência em 1988. Assisti a um de seus discursos na TV, e era de uma clareza, frases de efeito bem cunhadas, dicção e musicalidade como o líder maior, rev. King, Jr. Foi absolutamente comovedor ver Jackson falar, uma lágrima ameaçava brotar a cada palavra empolgada pela igualdade racial e pela paz. Os negros terminaram chegando à presidência apenas com Barak Obama (1961), prenúncio de um avanço político pela via eleitoral, dentro da tradição política do país.
Certa vez, fui acompanhar o coro de uma igreja batista negra nos EUA. Precisava de dinheiro, e o cachê caía bem. Ao ver aquela animação dos fiéis e um fabuloso coral de negros de todas as idades, afinadíssimo, cantando “Praise be to God”, “Forgive me Lord”, e uma jovem cantora solista fazendo gorjeios virtuosísticos, em meio à empolgação cativante dos presentes, tive duas grandes certezas. Uma, ninguém canta música popular como o negro norte-americano. Segunda: se me chamassem, voltaria de graça, pois a música elevava, cativante como poucas que ouvi na vida.