O que aconteceu com a poesia da MPB?





Não é fita, é fato. Chico, Caetano, Jobim, Aldir Blanc e os que partiram, como Vinícius e Gonzaguinha. Todos muito lidos, tinham na bagagem uma cultura de peso. Conheciam não apenas o universo musical, mas também os grandes poetas da nossa língua, de João Cabral e Drummond a Olavo Bilac e Claudio Manuel da Costa  aos lusitanos Camões e Fernando Pessoa. A cultura de Caetano Veloso é enciclopédia, a despeito de seu charme simplório. Já Chico tem incursões felizes na dramaturgia, como em “Calabar”, “A Gota d’Água” (sobre a tragédia Medéia, de Eurípedes), e “A Ópera do Malandro” (adaptada de John Gay e Brecht). Mas seus livros de prosa ficam à sombra de seu talento musical.

Em “Chuva, Suor e Cerveja”, Caetano Veloso domina a técnica de recursos como a aliteração (repetição de sons semelhantes): “(…) ladeira abaixo / acho que a chuva / ajuda a gente a se ver / venha, veja, deixa / beija, seja / o que Deus quiser”. “Acho que a chuva ajuda”, faz ressoar os sons “x” e “u” de maneira percussiva, com forte apelo rítmico. Em “Irene”, Caê esbanja seu talento de poeta: “quero ver Irene rir / quero ver Irene dar sua risada”.

 Em um velho programa da TV Record, “Esta Noite se Improvisa”, apresentado no final dos anos 1960 por Blota Júnior, Caetano desafiava cantores e compositores famosos. Exibia seu conhecimento do cancioneiro popular brasileiro e do além-mar, fados e modinhas portuguesas. O prêmio para o vencedor era um carrinho muito raro hoje, mas objeto de desejo na época: um Dolfine zero km. Chico e Caê deixavam a mão perto do botão, e logo após Blota Júnior sortear e anunciar “e a palavra é”, os dois já metiam a mão na campainha. Caetano era assombroso, tudo lhe vinha de imediato, era apertar a campainha antes mesmo de acionar sua rápida memória. Em uma das palavras sorteadas pelo Blota, “profundo”, Chico foi mais rápido no botão, e na falta de ideia inventou: “desci pro fundo da rede…” Blota anulou, a palavra era “profundo”. Chico perdeu o ponto, mas não perdeu a piada. Eu era então um garoto que adorava música, e em algumas festas, com violões e gente ligada à MPB, também brincávamos do sadio joguinho de salão “e a palavra é”.

Naquele tempo era parte da vida conhecer o cinema novo de Glauber e Pereira dos Santos, assim como ícones da contracultura como Kerouak, os antipsiquiatras Laing e Cooper e os então novos pensadores de esquerda, como Marcuse. Lia-se muito do melhor, de Machado de Assis aos modernos. Compositor e poeta, Vinicius de Morais nos deixou preciosidades, como o “Soneto da Separação”, ricamente musicado por Jobim: “De repente do riso fez-se o pranto / silencioso e branco como a bruma / e das bocas unidas fez-se a espuma / e das mãos espalmadas fez-se o espanto”. Aldir Blanc, bamba no gênero, deixou letras brilhantes como a de “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, em que elementos do dia a dia do povo envolvem o ouvinte em um ambiente sedutor: “Sentindo frio em minh’alma / te convidei pra dançar / a tua voz me acalmava / são dois pra lá, dois pra cá”. Era o homem tímido que não sabia dançar bolero, mas a voz carinhosa de seu par o ensinou: “são dois pra lá, dois pra cá”. O cotidiano surge na letra de maneira sutil, um simples curativo a amenizar a dor de um calo no pé: “e a ponta de um torturante ‘band-aid’ no calcanhar”.

Exemplos são infindáveis. Porém, naquele auge de criatividade dos anos 1960 a 1980, havia a inquietude juvenil, as teorias políticas sedutoras, o ler e ver bons livros e filmes, as conversas de bar que passeavam por todos os assuntos. Talvez um dos últimos nomes da boa letra popular tenha sido Cazuza. Não foi gênio em música, mas filho de João Araújo, produtor musical, conheceu bons artistas e tornou-se a voz de muitas letras emblemáticas, como em Brasil: “Brasil! Mostra tua cara / quero ver quem paga / pra gente ficar assim / (…) Qual é o teu negócio? / O nome do teu sócio? / Confia em mim”.

Houve ainda alguns arremedos de qualidade aqui e ali, como em Renato Russo, inteligente mas menos rico na construção e uso dos recursos poéticos. Servia melhor ao discurso direto, panfletário, como em “Que País É Esse?”, que virou lema para todos os protestos: “Nas favelas, no Senado / sujeira pra todo lado / ninguém respeita a Constituição / mas todos acreditam / no futuro da nação”. São as chamadas “rimas pobres”, da mesma categoria gramatical, e vêm aos pares, liberdade que a necessidade de expressão direta e fácil lhe dava.

Hoje, pegue o leitor uma lista das dez mais tocadas nas rádios e TVs: entre as cem primeiras de 2104 (site “Top 10 +”), Jorge & Mateus em terceiro, Luan Santana, quinto, e Anitta, nono. E ainda surgem João Bosco e Vinicius, mas não compre gato por lebre: os nomes são iguais, mas não são os grandes xarás do passado. “Indescritível”, deles, fica em 37º e ‘Sorte É Ter Você’ é o 62º. E nada que chame a atenção.

Gosto de letras do Zeca Baleiro, do José Miguel Wisnik e mesmo de outras mais simples, como as do Almir Sater, e singelas como as da Paula Fernandes, cuja voz discreta lembra a adorável Karen Carpenter. Mas vivemos uma crise cultural, e a MPB não cai sozinha com ela: em todo um processo histórico, o pensamento humano fez uma curva para baixo, reflexo da perda de referências ideológicas (“quero uma pra viver”, gritou Cazuza), de perspectivas políticas, filosóficas e artísticas. Com a cultura de hoje em recesso escolar, sem previsão de retorno, mais a educação largada em terceiro plano, há apenas dúvidas para do título acima, não respostas.