“Paris é uma festa”, disse Hemingway. No passado, reunia-se em cafés e bistrôs na Montmartre “la crème de la creme”, a nata dos intelectuais e artistas. Toulouse Lautrec, Stravinsky, Picasso, Dali, Chopin e sua esposa, George Sand (pseudônimo masculino de Aurore Dupin, que se vestia com roupas de homem). Tomavam do melhor cafezinho ao letal absinto (70º Gl). Era a efervescência cultural que surgiu nos ecos do iluminismo e da revolução (1789-1799).
A derrubada do regime monárquico foi conquistada à custa de muito sangue. O território da França (estado apenas em 843), ao longo de milênios, foi palco de dominações, invasões e guerras. Frases do hino (marcha militar, na verdade) “A Marselhesa”, composto para a tomada da Bastilha (1789) cantam “a bandeira sangrando erguida” e “o sangue do inimigo há de fertilizar o nosso solo”.
Na França, o “topless” é comum nas praias; lá, surgiram o biquíni (1946), e o monoquíni (de 1964, EUA), maiô de peça única que deixava os seios à mostra. Como em outros países da Europa, é comum ver homens e mulheres trocarem-se em público na praia.
1968 foi o ano de outra breve revolução. À frente o líder Daniel Cohn-Bendit – “Dani, o Vermelho” -, os estudantes chegaram ao poder, sob certa complacência do governo diante da expectativa de fracasso, tomando a capital e deixando o “poder” em 24 horas. (Belo depoimento é o livro “Nós que Amávamos tanto A Revolução’, do mesmo Cohn-Bendit, hoje um político de ideias contraditórias). Jornais como o “Libération” (1973), disseminavam ideias revolucionárias, e o país por muito tempo ditou ideias e a moda mundial (com Coco Chanel e Saint-Laurent, entre outros). No cinema de arte, eram modelos os festivais de Cannes e cineastas como Godard e Resnais, que deram ao Brasil o “Cinema Novo”.
Mais uma vez, corte para outro cenário. Nenhum livro sagrado das grandes religiões monoteístas declara ódio a outras religiões, todos são unânimes na pregação do amor e do culto a Deus. O Antigo Testamento e os Evangelhos, o Corão islâmico e o Torá judaico pregam-nos de forma semelhante. Contudo, certas irmandades terroristas islâmicas e setores radicais de Israel preparam “espaçonaves, guerrilhas” (obrigado, Caetano!) e ataques contra os que divergem de suas ideias e seu poder. Mas o ódio não está nos livros sagrados, está nos fanáticos do fundamentalismo radical, que leva terroristas a suicidarem-se para massacrar inocentes. O historiador Osvaldo Coggiola, titular de história da USP, publicou um pequeno livro que traça a história de vários conflitos e remete à origem maior de quase todas as guerras desde o século 20: o petróleo, fonte esgotável de energia que tudo indica será relevada a segundo plano em algumas décadas. Disse o Marx pensador: quem detém o poder econômico detém o poder político. E as fontes alternativas de energia mudarão essa configuração.
Nenhum livro sagrado prega o ódio e o terror. Bem escreveu Machado de Assis, no capítulo “A Ópera”, de Dom Casmurro: “Deus compôs a partitura, mas quem rege é o diabo”. Cada vez mais radicalizado, o terror executa sua ópera de massacres e crueldade.
Novo corte: em cena uma publicação libertária, o semanário “Charlie Hebdô” (criado em 1970, com o apoio de Sartre), de excelentes cartunistas de fama mundial. Caricaturas atiçaram ataques de grupos terroristas islâmicos (o primeiro em 2011), cometendo o que esses radicais consideram sacrilégios contra Maomé, que na visão deles é mais do que Deus, é um ídolo intolerante. E assim também “Charlie” fez troça do judaísmo e do catolicismo, entre outros. Terroristas atiçados acenderam seus pavios, e recentemente assassinaram 12 artistas em um ataque à sede do “Charlie” – e de quebra um ataque a um mercado judeu, espalhando mais uma vez medo e terror pelo mundo.
Nossa Constituição assegura, em seu artigo 5º, o respeito aos direitos e garantias individuais. Ali se dispõe que é livre “a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e se assegura a “indenização por dano material, moral ou à imagem”. A liberdade de expressão e manifestação não ampara ofensas e humilhações.
A Constituição assegura a livre manifestação artística, resguardados os direitos individuais, caminho que vem sendo construído lentamente, engatinhando rumo ao seu fiel cumprimento. O respeito a diferentes raças e credos é indissociável do Estado Democrático. A ladainha repetida nas redes sociais de que “caneta (cartum) não mata” serve para “épater la bourgeoisie” (chocar a burguesia) E fere, sim, de humilhação, danos profissionais e à família e até mata por depressão. A “caneta” é tão poderosa que assinou todos os documentos históricos, desde os principais discursos, como o “Gettysburg Address”, de Lincoln, e “Eu Tive um Sonho”, de Luther King, declarações de guerra, independência e condenações à morte. Ela assinou o testamento histórico de Getúlio e um patrimônio da humanidade, o de Heiligenstadt, de Beethoven. Sou pelo caminho da paz, apoio Israel e a criação do Estado Palestino, assim como o islamismo, o judaísmo e todas as religiões surgidas no amor e na paz; recrimino a pena de morte e todo tipo de terrorismo. E não me rendo ao modismo que vê charme na liberdade espalhafatosa que a França permite. Ofensas até pornográficas a religiões violam direitos humanos (cuja declaração universal a França foi um dos principais idealizadores) e colocam em risco a paz mundial. Toda organização fundamentalista de terror deve ser combatida até o fim. Amo os franceses, mas “Je ne suis pas Charlie”.