Afinal, o que será mesmo crime no Brasil?





Quando criança, fuçava em tudo. Lembro-me de que ganhei de meus pais um carrinho de bombeiros movido a pilha, daqueles que batem na parede e voltam. Mas preferi usar o motor do carrinho para construir um barquinho. Logo arrumei umas revistas básicas de eletrônica, e fui pela primeira lição: um rádio de galena, que ninguém hoje sabe o que é. Fácil: um cristal que, por meio de um fio atado a uma agulha em contato com uma lâmina de barbear presa a uma tábua, captava sinais de rádio. Já o irmão mais velho de um amigo estudava eletrônica em um cursinho mequetrefe, e logo aprendeu a guardar peças velhas e quebradas. “Mas pra quê?”, perguntaram os dois curiosos aprendizes. “Porque depois de um conserto, você mostra quantas peças trocou mesmo que troque nada, daí você ganha em cima”. Claro que foi um choque para mim descobrir isso, um truque simples que ainda é prática comum em diversos ramos de “consertos”.

Também descobri que o garoto de entregas da quitanda surrupiava alguma fruta ou legume no caminho. E que o porteiro do prédio cobrava um “pedágio” do empregado que as famílias pagavam para lavar seus carros. Nascia um empresário: o porteiro subiu na vida, comprou um táxi, uma frota, teve uma banca de jogo do bicho, e sua filha estudou na mais cara universidade particular do Rio. Na nossa esquina havia uma leiteria daquelas que recebia aqueles latões enormes para encher garrafas de vidro para entregas em domicílio. Seu dono havia enriquecido à custa de uns 20% da água com que “malhava” o produto. (O mesmo que “malhar” a gasolina com álcool e o metanol com água: era o lucro com “adicional de pilantriculosidade”). E aprendi que os táxis do Rio, em sua maioria, davam passeios, rodando a bandeira. Uma cantora cega conhecida percebeu que o taxista estava fora do caminho (cegos têm um poderoso “GPS” interno) e pediu que a largasse na rua. Foi assaltada e estuprada.

Fui aprendendo com a vida, meus pais e o bom-senso. Ao dar de cara com a ditadura, aos 15 anos, em 1968 – já era do grêmio do colégio, bem politizado -, aprendi quantas mordomias indecentes tinham alguns de nossos colegas filhos de almirantes, brigadeiros e generais e empresários ligados ao regime: os da caserna eram modestos funcionários públicos, mas a mosca azul do poder havia contaminado parte deles com todas as facilidades que lhes eram oferecidas: ora para fechar os olhos, ora para sumir com alguém incômodo, em troca de um simples mimo “sem esperar nada de volta”. Havia até menor de idade com um Puma O km – e que ainda dava “carteirada”.

Vinte anos depois, já diretor da Escola de Música do Teatro Municipal de São Paulo, recebi o dono de uma escola particular de música. Buscava apoio para supostamente conseguir bolsas de estudo para jovens carentes. Eu, crédulo, entreguei-lhe uma linda carta de recomendação. Mas desconfiei quando abri o “book” da escola e vi nomes de pessoas que, procuradas, disseram que foram apenas uma ou duas palestras – havia até uma professora já falecida. Logo recebi um chamado do Manga, assessor da Secretária de Cultura. Lá, ele me mostrou um pedido de comodato (cessão gratuita por uns 90 anos) de um imóvel da Prefeitura para a escola de música do sujeito, e no processo estava minha recomendação, que retirei com ódio. Chegando na escola, deparei-me com uma grande caixa que ele havia mandado entregar. Abri, e era um pequeno lindo piano de cauda cromático, presente para meu filho Lucas, na época com uns quatro anos. Levei o piano para casa, atravessei a rua, onde existe uma creche municipal chamada “Tenente Paulo Alves”, na vila Mariana. Levei-o com um ofício para doação, e as professoras festejaram. Ato contínuo, passei um telegrama ao doador: “Recebi seu gentil presente, mas como não posso aceitá-lo, doei-o à creche de nome tal e tal. Porém, sinto muito, não poderei servi-lo”. Quem lida com dinheiro público tem limites legais para mimos. Na Inglaterra, os congressistas podem receber até 140 libras (pouco mais de R$ 500,00) em presentes. A diferença entre a avaliação oficial e o limite legal deve ser depositada na conta do Tesouro, ou o “agrado” será devolvido.

No Brasil tudo começou desde quando trocavam-se com os índios espelhinhos por pedras preciosas, as vantagens dos fiscais das derramas dos tempos de Inconfidência, o saque generalizado ao nosso pau-brasil, ouro e borracha, portos abertos para sermos gatunados pela “matriz”. As 13 colônias americanas foram criadas por imigrantes que se estabeleceram para construir uma nação. Mas nossos “colonizadores” (ou saqueadores?) estupravam as nossas índias, e nossos senhores de engenho e nobres fornicavam (ou “fulecavam”) com as negras escravas, tudo formas de assalto pela violência. Quando a “Lei de Gérson” justifica sonegação de impostos – “por que vou pagar para ser roubado?” -, quando o dinheiro corre “por trás das cortinas” no Brasil inteiro, quando cidadãos se gabam de trabalhar sem carteira assinada para receber a “bolsa família”, quando o dinheiro do país escorre no esgoto podre do “caixa dois” e os mimos para os grandões são caríssimos e vêm junto com grandes vantagens e retribuições, o triste é ver o povo pensar, conformista: “Estoy acostumbrado a todas esas cosas…”. Afinal, se a doença é endêmica e a origem cultural, nada mais escandalizará o brasileiro: moral e lei perdem o sentido. Elas parecem valer apenas para os programas policiais da TV, com eventuais comentários ao arrepio da lei. Então, afinal, o que vem a ser crime no Brasil?