Marcelo Aith*
O profeta Isaías, iluminado pelo Espírito de Deus, diz: “Observem o direito e pratiquem a justiça, porque a minha salvação está para chegar e a minha justiça vai se manifestar. Feliz o homem que assim se comporta, feliz o homem que nisso persevera …”.
Os gestores públicos estão a observar o direito e praticar a justiça em relação às ações de combate ao coronavírus no estado do Amazonas?
O mundo acompanha atônito ao caos na saúde do Amazonas e o desgoverno na condução do combate à pandemia. Vivenciamos uma situação estarrecedora, inadmissível, inumana naquele estado: como podem deixar faltar insumos básicos como oxigênio?
Não são apenas os acometidos pelo coronavírus que demandam este insumo básico, mas quase todos os pacientes internados em UTIs. Não podemos olvidar que recém-nascidos de partos prematuros lutam pela vida e necessitam desse insumo.
Aqui cabe indagar: quem falhou? Quem era o responsável pela gestão da saúde no Amazonas? Qual a responsabilidade do governo federal?
A lei 8080/90 (Lei Geral da Saúde – Lei do SUS) regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado.
É a norma geral que traz os balizamentos e distribui as responsabilidades na gestão da saúde pública e pode lançar luzes sobre os questionamentos acima postos.
O artigo 2º da norma estabelece, em síntese, que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo os entes públicos prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
O dever de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Este princípio regente da saúde pública está sendo respeitado naquele estado? Os amazonenses estão tendo seus direitos preservados pelos gestores públicos?
Para responder a todos esses questionamentos, cumpre analisar os dispositivos da Lei Geral da Saúde.
O artigo 4º dispõe que o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.
Cumpre destacar que o SUS tem os seguintes objetivos: “I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; II – a formulação de política de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do art. 2º desta lei; III – a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas”.
Dentro do campo de execução, tem-se ainda o controle epidemiológico, que consiste em um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos.
Nos termos do artigo 9º da lei 8080/90, a direção do SUS é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: “I – no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II – no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III – no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente”.
Nos artigos 16 a 18 da Lei Geral da Saúde, respeitando os parâmetros constitucionais, estão estabelecidas as distribuições das competências dos entes públicos. Analisando esses dispositivos, poderemos entender de quem é a responsabilidade pela tragédia que está a assolar o Amazonas.
A direção nacional do SUS tem entre suas competências: definir e coordenar os sistemas “de vigilância epidemiológica” e “de vigilância sanitária”; “coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica”; “estabelecer normas e executar a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo a execução ser complementada pelos Estados, Distrito Federal e Municípios”; “estabelecer critérios, parâmetros e métodos para o controle da qualidade sanitária de produtos, substâncias e serviços de consumo e uso humano”; “formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais”; “prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional”; “promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal”; “acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais”; “elaborar o Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal”.
Além disso, compete à União – governo federal – nos termos do parágrafo único, do artigo 16, da Lei Geral da Saúde: “A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional”.
Ora, parece que o parágrafo único sinaliza algo importante em relação à situação do estado amazonense. O estado está a passar por “circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do SUS”? A resposta é mais do que óbvia. Mas vamos seguir na análise das atribuições dos entes públicos.
O artigo 17 da lei 8080/90 traz as competências dos estados em relação ao SUS. Cumpre destacar, por oportuno, as seguintes atribuições das unidades federativas: coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços de vigilância epidemiológica e de vigilância sanitária.
Além dessa competência do estado, há que se ressaltar que, em caráter suplementar, tem a atribuição de formular, executar, acompanhar e avaliar a política de insumos e equipamentos para a saúde.
Aos municípios, dentro da tripartição de competências da gestão do SUS, tem a atribuição de executar serviços de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária.
Ademais, dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde, bem como planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde.
No caso específico da situação do Estado do Amazonas, diante da iminência do colapso do sistema de saúde, cabia aos entes públicos solicitar auxílio da União ou mesmo a intervenção para que não se instaurasse o caos e a tragédia que estamos assistindo. Isso foi feito?
Conforme noticiado amplamente pela imprensa nacional e confirmado pelos gestores do estado e dos municípios amazonenses, o Ministério da Saúde foi comunicado sobre a situação em 7 de janeiro de 2021, porém não tomou qualquer medida eficiência para evitar a tragédia anunciada e uma semana depois, em 14 de janeiro, o oxigênio começou a faltar.
O Ministério da Saúde, em visita a Manaus, após ser alertado sobre o problema do oxigênio, declarou: “É importante que ninguém tenha dúvida de como é o planejamento e quais são as alternativas que nós temos. Sim, o ministério tem e terá capacidade de atender qualquer demanda que falhe em nível menor, município ou estado, ministério está preparado para isso”.
Em que pese o discurso do Ministro da Saúde, o oxigênio fornecido pelo governo federal para o Amazonas até o momento não é suficiente para suprir a demanda extra de um dia sequer.
Uma vergonha para dizer o mínimo! O descaso e o despreparo do governo federal, especialmente do general-ministro está a revelar a absoluta ausência de comando da Saúde nessa gravíssima pandemia que já ceifou mais de 210 mil vidas.
Dessa forma, é inequívoco que o governo federal deixou de cumprir sua obrigação prevista no artigo 16, parágrafo único, da lei 8080/90.
Há que ser posto um freio a essa necropolítica, que segundo o filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe “é o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer”capitaneada pelo Messias.
Em Isaías 57, 1 temos: “O justo perece, e ninguém se incomoda; os homens de bem são eliminados, e ninguém se importa”.
Os políticos e governantes são acusados pelo Profeta de não levarem a sério a própria função e de agirem em vista dos próprios interesses, assim começando, novamente, a se instaurar o regime de morte. Uma fotografia fidedigna da atual gestão da saúde pública no país. Vamos nos levantar e lutar antes que seja tarde demais, Brasil.
*Advogado especialista em direito público e professor convidado da Escola Paulista de Direito (EPD).