O tema, em arte, é recorrente, muito especialmente na música. Já tive oportunidade de citar neste espaço o grande violinista e compositor Tartini (1692-1770), que sonhara com uma peça de absurda dificuldade, que lhe havia sido tocada pelo demônio. Porém, depois dele, bem depois, Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) foi um talento surreal: repetiu de memória, aos seis anos de idade, um miserere inteiro, que havia ouvido uma vez apenas. Aos 12, sua primeira ópera, “Bastião e Bastiana”. Morreu jovem aos 35 anos de idade, deixando uma vastidão de peças, a maior parte de excepcional qualidade. Mas nada se falou, que eu saiba, de alguma ligação com o demo ou coisa assim. Com o romantismo, veio a época das mortes trágicas, amores impossíveis, suicídios, tuberculoses e pneumonias, que permearam as vidas loucas de Schumann, Liszt, Chopin e Beethoven, por exemplo. E maluquices passaram a visitar cada vez mais a mente fértil dos compositores.
Wolfgang Von Goethe (1749-1832), um dos maiores escritores da língua alemã, é autor de uma grande obra-prima, um poema em duas partes para ser encenado, como em um recitativo: “O Fausto”. A obra foi publicada em 1808, como “Fausto, uma Tragédia’ (“Faust, eine Tragödie”), e contava a vida de um certo Heinrich Faust, um grande intelectual, por sua vez baseado em escritos sobre a vida de Johann Faust – isso na virada dos séculos 15/16. Diz a lenda que Fausto adquiriu poderes mágicos para compreender tudo o que já foi dito e escrito. Ameaça suicidar-se, em desespero, mas, deixando entrar em seus aposentos um cão vira-latas, vê que o animal se transforma em Mefistófeles, personagem que evoca Satã, que lhe propõe: Fausto terá todo o conhecimento, desde que, descendo ao Inferno após a vida, seja servo de Satã até o final dos tempos.
Plena de citações, como a bruxa da poção mágica, personificada como Helena de Troia no espelho, a obra de Goethe leva Fausto a convescotes entre bruxas e demônios. O personagem, por descumprir – na forma que, com as devidas escusas, hoje chamaríamos “inadimplemento parcial” – parte do “contrato”, consegue se livrar dos braços de Satã, sendo conduzido ao Céu.
Thomas Mann, grande escritor alemão (1875-1955), filho do comerciante Johann Mann e uma brasileira, Júlia da Silva Bruhns, nasceu no então poderoso estado predominantemente protestante de Schleswig-Holstein. Mudou-se com a mãe para Munique, cidade católica mas extremamente permissiva, terra de boemia e festanças. Ali, Mann teve dúvidas sobre sua opção sexual, mas terminou se casando com Katia Pringsheim, judia que, com Mann, converteu-se ao luteranismo. Mann teve sua cidadania alemã cassada pelos nazistas (1936), por causa de sua esposa, e chegou a ser perseguido pelo macartismo anticomunista ao mudar-se para os EUA. Publica outras obras-primas da literatura, como “Morte em Veneza” (1911), que se tornou um dos grandes filmes de arte do século passado, filmado por Luchino Visconti em 1971, com Dick Boggarde e Silvana Mangano. O filme tem um discurso cinematográfico cheio de símbolos, e é ambientado pela monumental “5ª Sinfonia de Mahler”, em especial em seu movimento “Adagietto”. Transparece o conflito do personagem principal, um compositor adoentado, ao administrar uma paixão crescente por um sedutor adolescente de traços femininos, um polonês de nome Tadzio. O compositor morre sentado em uma cadeira de praia, admirando seu jovem amor platônico. A maquiagem que usava para encobrir sua doença desbotava e escorria com o suor. Um filme magistral.
Em “Fausto”, Mann retoma a lenda medieval e Goethe: um músico, Leverkhün, faz um pacto com o demônio, para obter desmedido virtuosismo. Vamos a um pequeno trecho (trad. livre pelo autor):
“Mas vejam o paradoxo de nosso artista: entenda que a expressividade – expressão como lamento – é o grande ponto de toda a construção artística: então não podemos fazer paralelos com outro aspecto, o religioso? (…) Aquele som que vibra no silêncio, que não está mais lá, e que fala apenas para os espíritos, som que tem a voz moribunda, não existe mais. Muda-se o significado: ele resplandece como uma luz no escuro.”
Mann começa a avançar sobre a expressão e a espiritualidade da música com seu personagem Leverkün em busca da perfeição. E avança sobre a figura do demônio:
“Tudo isso dito e sabido, eu agora peço licença para executar uma pequena obra que ouvi do adorável instrumento de Satã, cujos trechos as crianças cantaram para mim.”
Mann tudo elabora para chegar ao final do desespero de Leverkhün por não conseguir lograr a perfeição tão almejada, conforme trato celebrado com o Demo:
“Destruído pelo extraordinário, seu gosto arruinado por qualquer coisa, ele vai no mínimo deteriorar-se no desespero de executar o impossível. O problema para o talentoso artista era como, apesar de sua crescente obsessão, seu desgosto cada vez maior, ele ainda se sentir dentro dos limites do possível.”
Retornei a essa discussão, agora mais literária, inspirado pelas recentes palavras de Francisco, o papa, reproduzidas na imprensa mundial e celebradas como avanço por membros mais progressistas não apenas da Igreja Católica, mas também de outras comunidades religiosas. Disse ele: “Não há fogo no Inferno, nem Adão e Eva foram pessoas, tudo são símbolos bíblicos”. E já que não há aquele capeta retratado com chifres, rabo e tridente, resta-nos apenas trabalhar e não fazer tratos com quaisquer tipos de vigaristas, para não sermos vítimas de golpes e falsas promessas. Amém.