Receita para fazer um músico





E conviver com um deles

Quem vai a um concerto, a uma apresentação de balé, ou, ainda, uma partida de futebol, geralmente desconhece o quanto custou chegar àquela hora ou hora e meia de espetáculo. Não conhece as rotinas diárias de artistas e atletas. Um pianista, músico de orquestra ou banda passa várias horas diárias com seu instrumento, entre escalas, arpejos, métodos, estudos longos e repetitivos, e só depois passa ao estudo de uma obra, prática que se baseia na repetição de trechos, frases ou uma ou duas notas. (Uma grande violinista japonesa usa dois pequenos potes, um vazio e outro com 20 feijões. A cada repetição satisfatória de um trecho, um grão é retirado e colocado no pote vazio, até terminarem. Daí, passa à próxima frase). A bailarina passa muitas horas por dia em exercícios na barra, fazendo movimentos repetitivos, que muitas vezes a levam a precisar de um bom massagista. O jogador de futebol, ao entrar em campo para enfrentar os 90 minutos, passou a semana, todos os dias, horas por dia, a correr levantando a perna, fazendo polichinelo, flexões, nada que aparentemente se assemelha a uma partida de futebol. Os estudos dos músicos, os exercícios corporais da bailarina e a rotina de treinos do jogador em tudo se assemelham em busca de uma apresentação final. “A gente trabalha / o ano inteiro / por um momento de sonho / pra fazer a fantasia / de rei, ou de pirata ou jardineira / pra tudo se acabar na quarta-feira” (“A Felicidade”, de Tom e Vinicius).

E a cantora, que entra em palco para apresentar uma bela ária, como a “Rainha da Noite”, de Mozart (“um inferno vingador bate em meu coração”), ou a trágica morte de Violetta, na “Traviata” de Verdi? (aquela em que, tísica e moribunda, ela se despede de sua paixão: “Amami, Alfredo!”). Pois todos os dias, todos os meses, todos os anos, e há muitos anos, a diva trabalhou seus vocalises exaustivamente. Mão sobre o teclado do piano, tocando uma vez um acorde fixo, para guiar a tonalidade, ela repete, arpejando: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah… sobe meio tom, e repete: moa-moa-moa-moa-moo-oo-ah… mais meio tom, e assim por diante, até a nota mais aguda que ela suportar. E recomeça tudo, da nota mais grave de seu registro (algo como o tipo de timbre de voz), desta vez mudando a sílaba: ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri-ri… e depois com outra sílaba, até concluir sua preparação.

Ah, sim, cantora pronta, depois de bons estudos, encarna sua Violetta para agora repetir, um pigarro de leve antes, para não arranhar a garganta, e cantar sua súplica de amor para Alfredo, em “La Traviata” (…) “de alegria em alegria / escorrendo sobre a superfície / do destino da vida da maneira que eu quero. / Quando o dia nasce / ou quando o dia morre / com alegria me volto para novos deleites / que fazem meu espírito se elevar”. Não, Violetta, você não está pronta! Repita frase por frase, o trecho inteiro várias vezes, corrigindo-se! Ao terminar, passe para a próxima ária, e não se esqueça de parecer tuberculosa ao implorar, moribunda: “Amami, Alfredo!!!”. Não, Violetta, precisa ser mais dramática, diria repreendendo o métteur-em-scène, diretor da ópera. Você tem que estar perfeita, convincente, divina, e morrer lentamente, fazer o público derramar lágrimas! (Não posso me furtar de contar uma anedota real: estava o grande regente Sir Thomas Beecham ensaiando este trecho, quando, logo após uma pausa, o tenor dirige-se a ele para reclamar que aquela Violetta demorava demais para morrer, roubando-lhe a cena. O maestro: “Sir, nenhum cantor morre tão rápido quanto eu gostaria”). Piadinha maldosa típica do maestro, autor de dezenas delas.

Quem vai se casar com uma cantora, um instrumentista, leva junto essa rotina de estudos diários, escalas, arpejos, vocalises, passagens repetidas – como se diz em música, “ad aeternum”, pela eternidade? Muitos músicos se casam com músicos, às vezes de uma mesma orquestra. Ou em outra área, mas mantendo a cumplicidade nos estudos. Em casa, cada um em seu canto (e quando possível em seu próprio estúdio), usa de sua introspecção para se abstrair do parceiro músico. Quando ele ou ela não é do ramo musical, fica mais difícil, mas o convívio e a abstração vêm com a experiência de fazer outra coisa, como escrever textos, abrir  a contabilidade da empresa ou simplesmente distrair-se. Como fui casado com musicista, e entre meus quatro filhos uma é violoncelista, assim como o caçula, e a penúltima é um belo talento para flauta, conheço bem essa vida. Quantas vezes não dormi ouvindo duas pessoas estudando em quartos diferentes! O barulho de uma motocicleta me incomoda, mas a música… ela me embala. (“Nós somos os cantores do rádio / levamos a vida a cantar / de noite embalamos teu sono / de manhã nós vamos te acordar”, diz a letra dessa obra-prima de Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro).

É por necessidade que o músico chega cedo no palco para aquecer dedos, braços ou embocadura, além de aclimatar seu instrumento – sob refletores, a cada 10 graus Celsius a afinação das cordas cai um terço de tom e a dos sopros sobe outro tanto. É preciso se preparar, e quando todos já estão ouvindo a si próprios, abstraindo-se do som dos colegas e em perfeita introspecção – virtude dos bons artistas e dos bem preparados para ouvir música -, é nesse exato momento que se desenvolve para os que já se acomodaram na plateia ou estão entrando uma música diferente, sem forma ou tonalidade, apenas sons difusos. Agora, silêncio! Vai começar o concerto!