Talvez devêssemos deixar passar em branco esse estupro das instituições e dos direitos humanos dos brasileiros. Leva-nos à lembrança do presente de Natal de 1968 as últimas tendências ao “esquecimento”, as brumas que se pretende lançar para embaçar nossas vistas. Tal como a quartelada que lhe deu origem, o movimento de 1964. Revolução? Curiosa, porque o primeiro dispositivo do ato n. 1 assentou que “fica mantida a Constituição de 1946”. Revolução não é sua brutalidade, o sangue de um movimento político. Assim a imaginamos porque lembramos da Revolução francesa, seus homicídios, os profissionais dos cemitérios que preparavam covas até às desoras, para abrigar gente do terceiro estado da burguesia e da nobreza. Os dias eram mais terríveis que os nossos atuais, em que se fala só de corrupção e processos; eram de cortejos, pessoas e carruagens, umas atrás das outras, em direção à eterna residência dos mortos.
Revolução é volta ao nada e refundação do tudo. Literalmente, nova (re)volução. Se o direito constitucional era mantido, somente houve usurpação do poder por militares e impotência para resistir dos governados.
Nos Estados Unidos tudo é espetáculo, no Brasil tudo é jocoso: um grupo de estudantes, no dia 1º de abril de 1964, foi ao gabinete do governador paulista Ademar de Barros, para sugerir resistência, no que ouviram o que seria esperável: resistir com o quê, meus filhos, com a bunda?
O AI 5 foi uma primorosa obra de arte jurídica. Um engenho normativo que abarcou todos os pontos cardeais do direito. O inferno está cheio de obras-primas, para as delícias de seu chefe maior. Texto totalitário, tinha de ser total. Sem brechas. E assim foi. Nada escapou, a associação, a reunião, a expressão do pensamento, a imprensa livre e, sobretudo, pois garantia suprema da vida, o habeas corpus; e a pena de morte; as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos magistrados. O AI 5 não foi o golpe dentro do golpe. Desde Castelo Branco, os militares eram shakespearianos: ser ou não ser; democracia ou ditadura. O presente de fim de ano à nação brasileira foi esta, nua e crua, tornando a torpeza escancarada, como bem foi dito.
E por que querem, certos segmentos, meio centenário após, esquecê-lo ou, mais ainda, enaltecê-lo. Dizer que não o vivenciaram não é científico, mas a ranhadura de nossas peles é fonte do conhecimento (Hume). O que não se pode é esquecê-los nas páginas de história. Dizer o que foi – corretamente – seria escola com partidos?
A economia andava muito bem (embora poucos fossem os felizes, era preciso deixar o bolo crescer para o dividir, enquanto os cozinheiros o saboreavam) e o Estado bem organizado, a ponto de poder editar tamanha vilania.
A partir daqui, só nos resta recordar o gênio do século 18, Liev Tolstói: “Os ladrões são muito menos perigosos do que um governo bem organizado”.
“A verdade é que o Estado é uma conspiração desenhada não somente para explorar, mas acima de tudo para corromper seus cidadãos”.
“Os anarquistas estão certos em tudo, na negação da ordem existente e na afirmação de que, sem autoridade, não poderia haver pior violência do que as impostas pelas autoridades atuais. Contudo eles estão enganados se pensam que a anarquia pode ser instituída por meio de uma revolução. Ela será instaurada quando houver mais e mais pessoas que não exigem proteção do poder governamental… Deve haver apenas uma revolução permanente – a moral: a regeneração do homem interior”.
Grandes esperanças nos animaram depois dos dez anos de vigência do AI 5, sua revogação e da anistia recíproca. A solidez, porém, desmanchou-se no ar. O sentimento é de insuportável frustração.
O Estado brasileiro dos últimos anos e as declarações imprudentes e retificadas da governança, que aguarda para entrar no túmulo das liberdades, corrompeu de tal maneira boa parte de nossos concidadãos que se abrigaram numa padaria, onde o único aroma é o de coxinhas e mortadelas.
* Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados.