Há similaridades entre uma exposição de arte acusada de incentivo à pedofilia e blasfêmia, cancelada em Porto Alegre, e a ascensão do partido AfD (Alternativa para a Alemanha) como o terceiro mais votado nas eleições germânicas do final de semana passado? Há, infelizmente…
Mas, também, há diferenças, sendo a mais curiosa – na verdade, temerária – a de que todos, não só os minimamente informados, assustam-se ao ver uma agremiação política de extrema direita retornar ao parlamento alemão depois da Segunda Guerra Mundial.
A despeito disto, o inusitado é que a mesma maioria da população não parece se assustar em nada quando uma exposição de arte sofre censura e é cancelada antecipadamente – assim evidenciando-se prática comum ao autoritarismo extremo, tal o de Hitler, que quase acabou com o planeta imbuído de um fanatismo devastador…
Retornando à observação inicial: qual aspecto há em comum entre ambos os episódios? São vários, na realidade: a intolerância para com as “diversidades”, o desapego à liberdade de opinião e expressão, o uso da religião para se justificar a opressão, o fanatismo que tanto causa conflitos por sempre atuar nos extremos.
Hitler, adepto fanático de uma religião que pregava a superioridade da raça ariana, entendia estar fazendo o certo ao “purificar” o planeta, matando judeus e outros tantos “impuros” – ou “diferentes”. Não tenham dúvida disso.
No entendimento dele, qualquer cidadão a discordar de suas ideias era subversivo, blasfemo e, por conseguinte, sujeito à extinção – em nome, inclusive, da fé que ele entendia ser a correta.
Ocorre que todo fanático está certo em suas crenças, de tal sorte (dele e azar dos demais), que qualquer atitude sectária, até mesmo brutal, é justificada, pois ele, em última instância, estaria agindo em nome de Deus.
Mas, seria Deus conivente com a censura? E com a opressão? Por sua vez, claro, mesmo não sendo teólogo ou religioso de carreira, não seria pecado afirmar que o Pai discorda, completamente, da extinção de uma raça somente porque ela não segue a religião Dele, ou tampouco por não possuir ascendência teutônica.
Assim, basta observar que a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, que estava em cartaz no Santander Cultural, abordava a diversidade sexual – ou de “gênero”, como prefiram – foi cancelada antecipadamente por conta de protestos por se utilizar de signos religiosos em algumas de suas obras, consideradas ofensivas.
Sucede que, se ofensivas ou não, trata-se de arte. Em meio a essa arte, há mensagens, opiniões, visões de mundos distintos. Aspectos que ninguém precisa concordar, mas deveria respeitar.
Os organizadores da mostra, aliás, não saíram caçando cidadãos na rua, obrigando-os a nela adentrar. Deveria fazê-lo somente aqueles com interesse. Aos demais, há outros programas…
As apropriações de simbologias religiosas para a prática artística – que tanto incomodaram os sectários – impõem a seguinte questão, muito séria: a partir de que ponto, com quais critérios, estaria proibida a liberdade de expressão quando invoca a religião?
E seriam todas as religiões intocáveis, ou alguma teria privilégio (o que já implica em discriminação)? E quem seriam os gênios teólogos e/ou sacerdotes dotados da douta capacidade de impor a censura? Ou, enfim, a censura deveria abarcar tudo a ver com religião?
E, ato contínuo, a represália deveria se conter à mera censura, proibição, ou, a depender da blasfêmia, os mais afoitos já poderiam proceder à coleta de palha para garantir chamas mais fervorosas na fogueira da inquisição?
Reclamar, protestar, repudiar aquilo que incomoda faz parte do tal jogo democrático. Esta premissa tem de ser respeitada, no entanto, tão respeitada quanto o direito de se expressar também pela arte.
Nenhum indivíduo é obrigado a gostar do que vê, ouve ou sente (e a maior virtude da arte é também sua maior razão de existir: justamente, o fazer “sentir”).
Na verdade, o indivíduo pode virar o rosto, ignorar o que não lhe agrada. O que ele não pode, jamais, é impor aos outros os valores que somente lhe pertencem, ainda que faça parte da maioria da população (o que se configura em opressão à minoria).
O nazismo nasceu como um movimento mais religioso do que político, em meio a uma crise econômica e política nacional, ganhando uma minoria de adeptos inicialmente (lembra algo por aqui?).
Logo, somou mais e mais seguidores, até tornar-se maioria e, finalmente, ganhar o poder e causar a maior tragédia mundial da história, provando o quanto pode ser poderosa e nociva retórica populista, principalmente quando embasada no extremismo.
Fazer o que com a exposição, então? Deixar ela lá, ensejada pela antiga e tão saudável prática carnavalesca: vai quem quer! Pelo bem da democracia – que ainda é o regime político menos ruim já inventado –, quem não quer prestigiar algo que lhe incomoda, vai ao parque, ao cinema, ao estádio, ou ao templo que lhe convém…
Fundamental é que se respeite a opinião e o direito à escolha de cada um (inclusive, o de protesto contra a própria exposição, desde que não lhe imponha a censura).
Triste momento do Brasil, da Alemanha, do mundo, que perseguem a arte, elegem neonazistas na Europa… Triste é constatar que, conforme enquete promovida por O Progresso nesta semana, praticamente dois terços da população concordam com a censura. Mas, também isto deve ser respeitado.