“A nossa preocupação é tentar evitar que nossos filhos sofram o mesmo preconceito que nós na infância”. O objetivo citado pela professora Elaine Cristina Almeida Pires diz respeito a projeto que está sendo elaborado pelo NAF (Núcleo Afro-Feminino), organização não governamental formada por um grupo de mulheres e voltado à garantia dos direitos dos cidadãos negros.
No mês de celebração do Dia das Mães, comemorado neste domingo, 14, as integrantes da entidade trabalham para criar ação que pretende ter as escolas como cenário. O grupo quer levar às unidades de ensino a discussão sobre o racismo, que preocupa os pais de crianças negras.
A discussão acontece 145 anos após as mães mantidas escravas no Brasil registrarem a primeira de uma série de conquistas ligadas ao direito à maternidade.
Em 28 de setembro de 1871, por meio da lei 2.040, mais conhecida como “lei do ventre livre”, elas tiveram um alento. A legislação determinou que os filhos delas nascidos no império fossem considerados “de condição livre”.
Ainda que não significasse a liberdade propriamente dita, já que as crianças menores de idade ficavam em poder e sob autoridade dos proprietários das escravas, o dispositivo legal representou oportunidade de projeção para que as mulheres pudessem garantir aos filhos algo que não podiam ter.
Desde esse período, o país passou por uma série de transformações no que diz respeito à igualdade de direitos. Entretanto, pouco se avançou – no campo da discussão e em efeito prático – quando o tema é o preconceito.
Em Tatuí, o grupo composto por maioria de mães – sete das dez integrantes do NAF têm filhos – quer mudar esse panorama. Pelo menos, começar a rediscuti-lo.
No âmbito geral, a maternidade é considerada desafio para as mulheres. Para as negras – ou “pretas”, por questão de definição étnica –, o direito inclui obstáculos não visíveis, mas com efeitos que podem ser devastadores, como contam as militantes.
Não bastasse os anos de opressão com a escravidão, as mães negras precisam não só superar as marcas causadas pela submissão no decorrer dos séculos, mas aprender a lidar com os efeitos que a discriminação exerce sobre os filhos. A maioria das situações, segundo elas, se dá atualmente nas escolas.
O ambiente escolar é motivo de atenção para as mães negras. Elaine explicou que a inquietação se dá, em especial, por causa da interação social com as demais crianças. É nas escolas que as comparações sobre cor de pele e tipo de cabelo são feitas.
“Talvez, eu esteja enganada, mas as preocupações das mães brancas são só mandar as crianças para as escolas, para aprenderem os conteúdos. A nossa é – pelo menos a minha – não só mandar minha filha, mas tentar evitar que ela sofra o mesmo preconceito que eu sofri na infância”, enfatizou a professora.
De acordo com ela, em geral, as primeiras experiências de racismo ocorrem nas unidades de ensino. O problema é que as circunstâncias – sem falar no fato da discriminação em si – podem desmotivar o aprendizado e inferiorizar o negro.
Na tentativa de minimizar os efeitos, as mães contam que tentam motivar as crianças. “Nós dizemos que elas são lindas, que têm os cabelos lindos, mas isso dentro de nossa casa, junto ao círculo familiar. Quando a criança vai para um ambiente social mais amplo, a fala da família é diminuída”, explicou.
As interferências podem afastar as crianças negras das brancas, mas, em outro sentido, aproximá-las de seus iguais. A própria professora passou por experiência neste sentido.
Elaine contou que, durante a realização do projeto de contação de história, denominado “Contos Africanos”, realizado nas escolas da rede municipal, muitas das crianças negras se identificaram com ela.
“Depois que comecei com esse projeto, percebi o quão difícil é a vida das crianças negras nas escolas. Ouvi depoimentos das professoras e percebi como as crianças sofrem com a questão do preconceito”, relatou a docente.
A situação chega a ser tão grave que, conforme relatos das educadoras repassados para o grupo do NAF, algumas das crianças se recusam a acompanhar aulas de histórias que abordam conteúdos relacionados à África e à escravidão.
“Uma professora me confessou que uma menina não queria nem abrir o livro. Ela deitou a cabeça na carteira e sequer quis ouvir sobre a matéria”, disse Elaine.
De forma a melhorar a autoestima das crianças, a professora deu início ao “Contos Africanos”. Com apoio das militantes, Elaine quer levar, para as escolas, um outro modelo de ação. Desta vez, a intenção é preparar os professores.
A ideia é apresentar a proposta para a Secretaria Municipal de Educação. O projeto visa criar ferramentas que possibilitem extinguir o preconceito – ou, pelo menos, minimizá-lo.
O assunto começou a ser elaborado na primeira reunião pós-formação do núcleo, em decorrência de uma situação trazida por uma das integrantes.
Marília da Conceição é cabeleireira e contou às companheiras a queixa apresentada por uma cliente. A mulher disse que a filha reclamara dos cabelos, que, em geral, são apelidados de “ruins” pelas crianças que têm características diferentes.
Somadas às situações vividas por uma das filhas de Solange Cristina Pantaleão, as mulheres decidiram se organizar em prol de uma ação prática. “Tivemos a ideia de elaborar o projeto para as escolas porque vemos que o racismo tem sido forte, mas não sabemos como os professores têm trabalhado”, argumentou.
O grupo quer promover, junto aos docentes, capacitações para permitir que eles não só identifiquem quando há situações de discriminação, mas promovam a igualdade.
As mães também querem garantir o cumprimento da lei 10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003, pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. A legislação inclui, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
Dentro e fora das escolas
Embora mais comuns, os casos de discriminação ocorrem dentro e fora das escolas. No ambiente escolar, são mais evidentes para mães como Solange. A artesã conta que as duas filhas, uma de 11 e outra de 15 anos, relataram preconceito.
“Minhas meninas são bem preparadas e tiram de letra na escola, mesmo que voltem embora para casa chorando. A mais nova não reclama muito, mas a mais velha contou que, no final do ano passado, sofreu uma discriminação”, disse.
De acordo com Solange, um dos colegas da adolescente insiste em dizer que o cabelo dela é “duro”. O primeiro registro de discriminação ocorreu em novembro do ano passado, quando a mãe pensou em procurar a direção da unidade.
A intenção era convencer o comando a permitir a realização de palestras sobre o preconceito e os efeitos dele. Entretanto, a ideia não vingou, uma vez que houve troca da direção da unidade escolar. Solange disse, também, que não levou a questão adiante por não ter tempo suficiente para formatar a proposta.
Situações como a vivida pela filha da artesã revoltam as mães. “Dá vontade de a gente ir à unidade e discutir, mas é preciso ver que há uma reprodução”, disse Elaine.
Segundo a professora, as violências provocadas pelas próprias crianças comprovam que mesmo as que agem com preconceito são vítimas das circunstâncias.
“As crianças que menosprezam as outras receberam más influências. É preciso entender que elas estão apenas reproduzindo o que apreendem e focarmos em ações que possam ajudá-las a enxergar que isso é errado”, acrescentou.
Mãe de uma menina de dez anos, Elaine é exemplo de como a dificuldade pode ser transformadora. A professora iniciou o projeto de contos africanos – que traz histórias de valorização da figura negra – por conta de um episódio vivido pela filha na escola. A menina queria interpretar uma princesa, numa história infantil, mas havia sido desmotivada pela professora, com a alegação de que “as princesas são loiras, brancas e de olhos azuis”.
Do “portão para fora” das escolas, as discriminações ocorrem em todos os âmbitos e idades. Também são “amplas” no sentido de ambientes. Solange citou um caso recente, registrado há 15 dias e envolvendo dois primos dela – um homem e uma mulher.
Morador de Osasco, o homem veio a Tatuí para participar do casamento de uma das sobrinhas da artesã em veículo separado da mulher. Chegando à cidade, o motorista foi parado por um comando da Polícia Militar. Entretanto, a mulher, não.
Conforme testemunho das pessoas, nenhum dos veículos que passaram pelo local havia sido parado. Como seguia o homem, a prima da artesã resolveu parar o carro atrás do veículo dele. Durante a abordagem, ela reclamou da postura dos policiais, mas recebeu a resposta de que a ação era de rotina.