Pelo menos uma vez por semana, dez mulheres se reúnem para a discussão de assuntos relacionados à militância em favor da raça negra em Tatuí. Integrantes do NAF (Núcleo Afro-Feminino), elas realizam atividades visando à ampliação de uma rede com fim em comum: garantir os direitos do cidadão negro.
Entre as atribuições, o grupo promove debates para reflexão de temas ligados à cultura, raízes e história dos afrodescendentes. Na noite de quinta-feira, 11, as militantes do NAF incluíram mais um tema na pauta, envolvendo a data considerada emblemática e que alcança os 129 anos: a abolição da escravatura, instituída em 13 de maio de 1888.
Composta por dois artigos, a lei 3.535, que declarou extinta a escravidão no Brasil, é assinada pela então princesa regente Isabel Cristina Leopoldina de Bragança. Apesar da importância reconhecida – por pessoas de todas as etnias e em graus distintos –, a legislação não integra uma das prioridades dos movimentos negros.
“Cada um tem o seu ponto de vista, mas eu, especificamente, não comemoro o 13 de maio”, contou a professora Elaine Cristina Almeida Pires. “Na verdade, essa data sempre me incomodou”, disse a educadora, que milita na causa.
Elaine é uma das fundadoras do grupo feminino de pesquisa e atua em âmbito regional e junto às escolas. Ela explicou que, para uma parcela da comunidade negra, a data não faz jus ao movimento pré-abolição.
Isso não pela questão da libertação em si, mas por desconsiderar todo um movimento de lutas que existia na época. Ponto pacífico entre os historiadores e pesquisadores do assunto é que a abolição é consequência de uma sucessão de acontecimentos.
Em função das pressões internas e externas, a monarquia se viu obrigada a oficializar em ato uma questão considerada inevitável. Em Tatuí, por exemplo, registros históricos dão conta da libertação de todos os cativos um ano antes da lei áurea, em 1887.
Em todo o país, movimentos abolicionistas se multiplicavam, amparados na pressão internacional. Na época, o Brasil ocupava a posição de único país no mundo a manter o modelo de exploração de mão de obra humana.
Noutra frente, os escravos se organizavam cada vez mais em quilombos, promovendo rebeliões que resultaram em batalhas em prol da libertação.
“A princesa foi obrigada a assinar a lei áurea”, reforçou Solange Pantaleão. De acordo com ela, a libertação dos escravos determinada pela regente apenas legitimou os movimentos de resistência. “Era inevitável que acontecesse”, apontou.
Mais de um século depois da promulgação da lei, as militâncias voltam a discutir sobre a data. Em Tatuí, o 13 de maio não é celebrado pela comunidade negra.
“Não comemoro, mas passei a fazer reflexões depois que me dei conta de que era negra”, contou Elaine. A professora considera que o caminho para a valorização da pessoa negra é ela desenvolver consciência própria.
Neste contexto, o 13 de maio pode servir de mote para um trabalho de ressignificação. A professora defende a transformação da data – como ato de libertação – para um debate mais amplo, vislumbrando engajamento da população negra.
“Nós queremos colocar o negro como protagonista de sua própria libertação e não usar a data como comemoração. É possível reconstruir esse momento da história do país, mas por meio de ações de envolvimento”, acrescentou.
A ressignificação em Tatuí é um dos temas presentes na pauta do NAF. O núcleo acrescentou o assunto neste mês como forma de aglutinar as múltiplas opiniões das integrantes. A partir daí, promoverá reflexões que estimulem a criação, formatação e implantação de ações de valorização do negro.
“Não me sinto incomodada com a data, e, quando colocamos ela em discussão, vimos que, no próprio núcleo, temos pontos de vistas diferentes”, disse Solange.
A artesã também não comemora a data, mas classifica o 13 de maio como um marco. “Pressionada ou não, obrigada ou não, a princesa assinou a lei. É um fato histórico e uma data para refletirmos sobre o que nossos antepassados passaram. Acho que não é algo que dê para ficar indiferente”, argumentou.
Considerando a transição vivida pelos libertos, sem perspectiva de trabalho e tendo de prover a própria sobrevivência, Solange pensa na abolição como um momento emblemático na história do Brasil. Primeiro, porque os afrodescendentes deixaram a condição de escravos; segundo, por causa das barreiras seguintes que eles enfrentaram para serem reconhecidos como cidadãos brasileiros.
“Pode até ser que ficou pior, mas, pelo menos, os negros deixaram de ser explorados. Então, não comemoro, mas acho importante fazer uma reflexão”, comentou.
Na cidade, o NAF exerce papel fundamental no entendimento de todo o processo de libertação. Em especial porque estimula a conversação, por meio de rodas de estudos, um trabalho à parte realizado pelo grupo de mulheres.
Nos encontros, as integrantes levam fatos do cotidiano do cidadão negro e eventos contemporâneos, instigando a reflexão. “Fazemos isso até para termos ferramentas para colocarmos em prática os objetivos que temos”, explicou Elaine.
As metas são sempre a valorização do cidadão negro, por meio do “empoderamento” e, em especial, via conhecimento. Um dos trabalhos realizados pelo núcleo envolve a distribuição de livros relacionados ao tema.
O projeto é desenvolvido pela socióloga, produtora cultural e poetisa Priscila Flor. “Nossa causa é, realmente, elevar o papel do negro na nossa sociedade. Para isso, precisamos de um certo conhecimento que se busca pela leitura, discussões como a que estamos realizando a respeito do 13 de maio”, disse ela.
Em outra frente, o NAF estimula a realização de ações com crianças nas escolas da rede municipal. Com apoio da Secretaria Municipal de Educação, Elaine desenvolve, nas unidades de ensino, o projeto chamado “Contos Africanos”.
A iniciativa consiste na “contação de histórias” para crianças, que valorizem o negro. Os contos são baseados em histórias que trazem personagens negros (reis, rainhas e princesas), como forma de estimular a valorização das crianças negras da rede local e o respeito mútuo entre os estudantes de todas as etnias.