Projeto de tratamento com cannabis em Tatuí merece apoio

O debate sobre o uso terapêutico de medicamentos à base de cannabis deixou há muito tempo o campo da polêmica abstrata para ocupar seu devido lugar: o da política pública baseada em evidências.

Nesse sentido, o projeto de lei 229/2025, apresentado pelo vereador Renan Cortez (MDB), que objetiva instituir uma política municipal de distribuição gratuita de medicamentos formulados com cannabis medicinal pelo SUS merece atenção cuidadosa e, sobretudo, um olhar pragmático (reportagem nesta edição).

Não se trata de discussão ideológica, mas de reconhecer que a medicina evoluiu, a legislação nacional avançou e milhares de famílias seguem enfrentando barreiras econômicas e burocráticas para acessar tratamentos comprovadamente eficazes.

Nesse sentido, o projeto de Cortez considera premissas claras: o uso terapêutico dos derivados da cannabis é autorizado pela Anvisa; há respaldo de decisões do Supremo Tribunal Federal e alinhamento com a legislação estadual já em vigor; e a literatura científica acumulada ao longo das últimas décadas estabelece uma base sólida para sua aplicação clínica.

Ignorar esse conjunto de fatos seria desprezar avanços importantes da ciência e negligenciar pacientes que têm seu bem-estar comprometido por falta de alternativas.

A proposta prevê que o acesso aos medicamentos dependa de prescrição médica, laudos fundamentados e comprovação de residência — medidas que garantem rigor, controle e responsabilidade.

Além disso, os produtos fornecidos precisariam possuir registro na Anvisa ou autorização excepcional de importação, assegurando que o tratamento se dê dentro dos parâmetros legais e sanitários necessários.

Tratar-se-ia, portanto, de uma política pública estruturada, compatível com modelos já adotados em outros estados e municípios brasileiros.

O mérito central do projeto está no reconhecimento de que há doenças para as quais os medicamentos convencionais não oferecem respostas satisfatórias, enquanto o canabidiol (CBD) e outros derivados têm demonstrado resultados expressivos.

A lista é extensa: epilepsia refratária, transtorno do espectro autista, Parkinson, esclerose múltipla, dores neuropáticas crônicas e quadros psiquiátricos de difícil manejo. Em muitas dessas condições, a literatura científica aponta melhora significativa na qualidade de vida do paciente e redução de sintomas incapacitantes.

No caso da epilepsia refratária, por exemplo, estudos internacionais indicam redução de crises em até 50% dos casos resistentes aos tratamentos tradicionais.

Em famílias que convivem diariamente com convulsões severas, a possibilidade de acesso gratuito a um medicamento autorizado e eficaz representa não apenas um alívio médico, mas um impacto social profundo.

O mesmo se aplica às famílias de crianças e adolescentes com autismo, que enfrentam desafios constantes decorrentes de irritabilidade, crises de agressividade e distúrbios do sono — sintomas que a literatura associa a melhora relevante quando há indicação e acompanhamento adequados do uso do CBD.

Outro ponto de relevância é a equidade. Medicamentos à base de cannabis têm custo elevado e, mesmo quando há autorização de importação, o preço muitas vezes torna inviável o tratamento contínuo.

O projeto apresentado possibilita que o município assuma essa responsabilidade de maneira organizada e técnica, criando uma comissão especializada com profissionais da saúde pública, especialistas na área e representantes de entidades dedicadas ao tema. Isso asseguraria que a distribuição fosse pautada por critérios transparentes e amparados pela ciência.

Não se trata, por conseguinte, de oferecer um tratamento experimental, mas de incorporar ao SUS municipal uma política já reconhecida, regulamentada e aplicada em diferentes regiões do país, ajustando-a às necessidades locais.

A própria legislação estadual de São Paulo, mencionada na justificativa do projeto, estabelece parâmetros para a oferta gratuita — e alinhar Tatuí a essa diretriz significa ampliar o alcance das políticas públicas e atender um número maior de pacientes que dependem desse tipo de terapêutica.

Importante notar, também, que o projeto autorizaria o município a firmar convênios com universidades, entidades especializadas e organizações sem fins lucrativos.

Essa abertura à cooperação é estratégica: permite aprimorar o acompanhamento técnico, qualificar profissionais e garantir que a política seja implementada com segurança e eficiência.

O fortalecimento dessas redes é um dos caminhos mais promissores na construção de políticas de saúde que não se limitem a distribuir medicamentos, mas que integrem pesquisa, capacitação e acolhimento às famílias.

A iniciativa, assim, toca em um tema urgente e sensível: a democratização do acesso à saúde. Em muitos casos, a ausência de tratamentos eficazes representa limitações profundas para pacientes e seus familiares, que enfrentam dores crônicas, crises recorrentes e impactos severos no cotidiano.

A distribuição gratuita dos medicamentos, quando indicada por profissionais habilitados, é um avanço que coloca o bem-estar dessas pessoas no centro das decisões públicas.

O projeto segue agora para análise e debate, como ocorre em uma democracia saudável. Mas é importante que a discussão se dê com base na ciência, na legislação existente e na realidade de centenas de famílias que aguardam alternativas terapêuticas viáveis.

A modernização das políticas de saúde passa justamente pelo reconhecimento de que novas soluções precisam ser incorporadas quando demonstram segurança e eficácia — e é esse caminho que a proposta aponta.

A partir desse projeto, Tatuí pode dar um passo significativo no rumo de uma política de saúde pautada na inclusão, atualizada e alinhada às necessidades reais da população que vive com dor, limitações e desafios que a medicina tradicional, por vezes, não consegue solucionar plenamente.