A Senhora da Porta

Crônica

Lucas Ravacci *

Foi numa manhã qualquer, dessas em que o tempo corre apressado entre o relógio e o caminho do trabalho, que uma fotografia me fez parar. Circulava pelas redes sociais, a foto de uma senhora de semblante sereno à porta de um velho casarão — o mesmo que, ainda hoje, me acompanha diariamente no trajeto, silencioso guardião de tantas histórias. A imagem, simples e luminosa, transmitia uma ternura antiga, dessas que fazem o coração reconhecer algo que nunca viveu. E foi assim, pelo afeto despertado por uma fotografia, que nasceu o desejo de conhecer quem fora Adelaide Lopes Ginez.

Nascida em 28 de setembro de 1917, Dona Adelaide era filha de espanhóis vindos da Andaluzia, que antes de aportarem no Brasil, haviam passado uma temporada na Argentina, como tantos imigrantes que buscavam, em terras novas, um recomeço. Cresceu, portanto, entre sotaques e memórias estrangeiras, tendo no Brasil o seu lar definitivo. Casou-se muito cedo, construiu sua família em Itapetininga, e teve cinco filhos — quatro mulheres e um homem, que seriam o grande orgulho e sentido de sua vida.

Embora formada professora, só veio a exercer o magistério quando a filha mais nova já era adolescente. Lecionou matemática na Escola Modesto Tavares de Lima, por breve período, mas foi como professora particular que deixou marca. Acompanhava os alunos com paciência e rigor, ajudando-os a decifrar os números e as lições com a mesma delicadeza com que organizava sua casa.

A casa, aliás — a da fotografia — era o espelho de Dona Adelaide. Clara, ampla e sempre impecável. Seu esposo, o alfaiate afamado e agente de saúde, Sr. Cyro Ginez, mantinha o assoalho de madeira reluzente, lustrado com o velho escovão que dava brilho e som ao lar. Nenhum grão de poeira ousava repousar sobre os móveis; as camas exibiam colchas perfeitamente esticadas; a mobília, disposta com precisão quase matemática, compunham um cenário de harmonia e zelo.

Mas havia calor ali. Um calor que vinha da cozinha, onde Dona Adelaide reinava com talento. Seu feijão perfumado, o assado suculento, o bolo com erva-doce — tudo exalava um aroma de aconchego que, dizem, invadia a rua e se misturava ao cheiro das flores do quintal. Além de cozinheira primorosa, era exímia costureira. Criava vestidos de baile bordados com paciência e amor, e também modelos inspirados nas modas das boutiques, para agradar às filhas.

Tinha um humor fino, desses que disfarçam sabedoria em leveza, e uma curiosidade que o tempo nunca venceu. Gostava de ler e recitar poesias — tinha em casa os imponentes volumes da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, de onde extraía contos, versos e trechos de romances. Antes mesmo disso, assinava o Clube do Livro, que mensalmente lhe trazia novidades literárias. Lia, cantava, declamava — como se as palavras e as melodias fossem pontes para os dias que já tinham passado.

Com o tempo, os filhos seguiram seus caminhos, e o marido partiu em 1972. Dona Adelaide, então, passou a viver sozinha naquela casa tão cheia de ecos — e só bem mais tarde aceitou a presença de uma cuidadora. A fotografia que primeiro vi, aquela que tanto me comoveu, foi tirada nesse período: ela à porta, serena, guardando sua história e sua casa, como quem sabe que o tempo pode levar tudo, menos a dignidade de uma vida bem vivida.

Partiu em 2011, já nonagenária, depois de três anos convalescendo por causa de uma fratura no fêmur. Deixou saudades — muitas — nos que a conheceram e, curiosamente, também em quem não teve essa chance.

Hoje, todas as vezes que passo diante daquele belíssimo casarão, sinto que ela ainda está ali, na porta, olhando o movimento da rua, cuidando silenciosamente da memória que permanece. Não a conheci, mas Dona Adelaide Lopes Ginez me tocou com a força de quem, mesmo ausente, continua presente. E por isso, eternizo-a nestas linhas — para que não viva apenas na imagem que me despertou, mas também na literatura que agora a acolhe. E assim, cada passagem diante de sua antiga casa é uma reverência, um pequeno gesto de gratidão à mulher que transformou o cotidiano em poesia, e a vida, em memória.

* Assistente social, atuando na execução de políticas públicas, defesa de direitos e docência universitária. Membro da Academia Itapetiningana de Letras e da diretoria do Centro Cultural Brasil Estados Unidos.

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