
Chegar ao bicentenário de fundação é, para qualquer cidade, mais do que uma celebração de datas e feitos: é um convite à reflexão. Um momento em que o passado se impõe, não como lembrança nostálgica, mas como ponto de partida para compreender o presente e planejar o futuro.
O município, que se prepara para comemorar 200 anos de existência, passa a contar com uma iniciativa que alia pesquisa, memória e compromisso social.
A série de reportagens especiais “Tatuí 200: Outros fatos, outras histórias”, que o jornal O Progresso passa a publicar, tendo como autor o jornalista e pesquisador Cristiano Rodrigues da Mota, representa um primeiro passo nesse processo.
Muito além de relembrar episódios conhecidos, o projeto propõe revisitar a história do município com rigor documental e olhar crítico — um gesto de resgate e, ao mesmo tempo, de reconstrução.
Em tempos de informações fragmentadas e memórias cada vez mais mediadas por redes sociais, revisitar as origens de uma cidade torna-se um ato de “resistência cultural”.
O trabalho de Mota, resultado de mais de uma década de investigações em arquivos públicos, acervos particulares e fontes digitais, coloca a historiografia local sob nova luz.
Reunindo documentos inéditos — desde cartas de sesmarias e registros paroquiais até atas da antiga Câmara de Tatuí —, o pesquisador propõe algo essencial: libertar a história do domínio do senso comum e devolvê-la efetivamente à sociedade, para que todos possam conhecê-la mais a fundo, interpretá-la e, se necessário, questioná-la.
A história, afinal, como lembra o próprio jornalista, “não tem dono, não deve permanecer escondida nem ser instrumento de poder”. Essa é a essência de um trabalho verdadeiramente público.
O valor de um projeto dessa natureza transcende a dimensão acadêmica. Quando um município se dispõe a revisitar seus próprios alicerces, ele valoriza, de fato, sua identidade coletiva. Saber de onde viemos é condição indispensável para compreender quem somos e para onde queremos ir.
Nesse sentido, o bicentenário de Tatuí surge não apenas como uma efeméride simbólica, mas como oportunidade concreta de autoconhecimento.
As descobertas apresentadas pelo pesquisador — como o detalhamento dos processos de manumissão dos escravos, as disputas territoriais, as primeiras escolas, a construção do primeiro teatro e até registros de epidemias — ajudam a reconstruir a tessitura de uma comunidade formada pelo esforço e pela diversidade.
São fragmentos que, reunidos, recontam a cidade sob uma perspectiva mais humana e menos idealizada. A iniciativa também reafirma o papel do jornalismo como guardião da memória.
Ao longo de quase cem anos, o semanário tatuiano acompanhou a evolução da cidade, registrando seus avanços, suas crises e seus personagens. Agora, ao lançar uma série que recupera e reinterpreta dois séculos de história, o jornal, a partir do esforço de Mota, cumpre uma de suas mais nobres missões: promover conhecimento e estimular o debate público.
Não se trata de “revisitar” o passado apenas por saudosismo, mas de fazê-lo com o propósito de formar consciência histórica — base indispensável para o desenvolvimento social e político de qualquer comunidade.
A pesquisa conduzida por Mota chama atenção não apenas pelo volume de material encontrado, mas pela profundidade analítica. Ao se debruçar sobre temas sensíveis, como a escravidão e a formação administrativa do município, o autor rompe com versões cristalizadas que, por muito tempo, foram aceitas como verdades incontestáveis.
O questionamento sobre se Tatuí foi, de fato, uma das primeiras cidades brasileiras a libertar seus escravos, por exemplo, não é uma provocação isolada, mas um convite à revisão crítica.
É por meio de investigações como essa que se torna possível compreender as nuances do processo histórico e reconhecer o papel de diferentes grupos na construção da sociedade local.
Outro mérito do projeto está na democratização do acesso às fontes. Ao anunciar que todos os documentos transcritos — mais de 470 ligados diretamente à história de Tatuí — serão disponibilizados ao público, Mota defende, na prática, a ideia de que o conhecimento histórico deve ser compartilhado.
Trata-se de uma postura que estimula o exercício da cidadania cultural. Quando a história deixa de ser privilégio de poucos e passa a ser patrimônio de todos, a sociedade inteira se fortalece.
O conteúdo reunido para a série não se limita a textos e registros. Entre os achados mais expressivos, estão vídeos inéditos, datados das décadas de 1940 e 1950, que retratam a cidade em momentos de transformação social e econômica.
Imagens como a da prefeita Chiquinha Rodrigues discursando na inauguração do Posto de Puericultura ou as cenas do trabalho da Associação das Mães de Tatuí acrescentam dimensão viva à memória coletiva. São fragmentos que dão rosto e voz a um passado ainda pouco “visto”, aproximando o leitor de suas próprias origens.
Por sua vez, revisitar a história é, também, repensar o futuro. E, se há algo que Tatuí sempre demonstrou ao longo de seus 200 anos, é a capacidade de se reinventar.
A cidade que nasceu entre trilhas coloniais e capelas, que floresceu com o comércio, a música e a educação, agora se posiciona como centro cultural e intelectual do interior paulista. O resgate de sua história, nesse contexto, não é só celebração: é um ato de continuidade.
Por isso, este projeto, mais do que uma homenagem, é um compromisso. Um compromisso com a verdade histórica, com a preservação da memória e com o fortalecimento da identidade local.
Em um país que tantas vezes negligencia seu passado, Tatuí oferece, com esse esforço, um exemplo de responsabilidade cultural. Cabe à comunidade, aos leitores e às instituições locais acolher esse trabalho, valorizá-lo e, sobretudo, participar dele — porque a história de uma cidade nunca é definitiva: é escrita todos os dias, por todos nós.







