
Da reportagem
O jornal O Progresso de Tatuí inicia, a partir da próxima semana, a publicação de uma sequência de reportagens dedicadas ao bicentenário do município.
A exemplo do que aconteceu com a edição do centenário, em agosto de 1926, quando houve a compilação dos principais fatos que deram origem a Tatuí, o semanário apresentará um de seus maiores – e mais exclusivos – conteúdos dedicados à história do município.
A série especial comemorativa aos 200 anos de Tatuí é produzida em parceria com o jornalista Cristiano Rodrigues da Mota. O projeto é resultado de anos de investigação. “Ele surge a partir da reunião de documentos, garimpados em um sem-número de fontes documentais”, conta Mota.
O conteúdo inédito será veiculado semanalmente em uma coluna própria e promete “passar a história da cidade a limpo”. A proposta é que, ao final da publicação dos textos, as fontes – principalmente, as primárias – sejam disponibilizadas ao público.
“A história não deve ser um produto privado, restrito, porque não tem dono. Não pode permanecer escondida ou inacessível, muito menos, comercializada. Também não deve ser um instrumento de disputas, menos ainda de poder. Precisa ser compartilhada e chegar a todas as pessoas”, sustenta o jornalista.
O trabalho surge como um desmembramento de outro estudo – esse, mais antigo –, iniciado em 2010, com a proposta de revisitar um dos fatos mais propagados do município e uma das grandes curiosidades sobre sua história: Tatuí foi realmente uma das primeiras cidades do Brasil a libertar seus escravos?
“Há 15 anos, comecei uma pesquisa dedicada à escravidão. Trabalho que se originou de uma conversa, transformou-se em uma inquietação e, depois, na proposta de uma coletânea”, conta.
“Um estudo que interrompi e retomei incontáveis vezes por razões que se justificam: a conclusão do curso de mestrado em ciências da comunicação, na Universidade de São Paulo, e a realização de um estágio doutoral na Universidade do Minho, em Braga, Portugal”, acrescenta.
O jornalista explica que, durante as buscas sobre os escravizados, deparou-se com fatos históricos “conflitantes”. Entre eles, o surgimento de Tatuí como um desmembramento da capela de Nossa Senhora do Pópulo (cujo nome varia entre del Pópolo e Populo), a ligação dessa com São-João-do-Bemfica e a Fábrica de Ferro São João do Ipanema, além da atribuição de fatos aos chamados “pais fundadores”: sendo o primeiro – e o mais mencionado –, o bandeirante Paschoal Moreira Cabral, e o segundo, o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão.
“É quase uma unanimidade, quando falamos de Tatuí, que as pessoas não conseguem compreender, claramente, quais são as relações entre esses fatos e esses personagens, porque eles estão ligados mais à memória e menos à história. E isso me motivou a começar uma empreitada que se materializa agora”, explica o pesquisador.
O levantamento dos dados levou uma década, tendo sido concluído em março de 2025. Mota conta que acionou, inicialmente, diversos memorialistas e órgãos públicos e particulares em Tatuí, como unidades cartoriais, o MHPS (Museu Histórico “Paulo Setúbal” e a Câmara Municipal, para obter as documentações.
“Nenhum deles, infelizmente, possuía acervos disponíveis, ou os tinha em condições de acesso. Na Câmara, inclusive, expus os caminhos que já estava percorrendo havia anos nessa direção, informando quais fontes foram consultadas e o que havia sido apurado”, afirma.
A conversa com a diretoria do Legislativo e a assessoria de comunicação incluiu, até mesmo, a proposta de uma exposição interativa, que não avançou, informa o pesquisador.
“Eu queria apresentar à cidade os documentos em uma mostra na Câmara, a quem entregaria as transcrições, já que os documentos são difíceis de serem interpretados, pois exigem conhecimentos paleográficos que adquiri por absoluta necessidade”, disse o jornalista.
Uma exposição futura, no entanto, deve ser viabilizada junto ao Núcleo de Justiça Restaurativa. Essa nova, porém, compondo apenas o projeto voltado à escravidão. O trabalho será realizado em parceria com o juiz Marcelo Nalesso Salmaso.
Contudo, o jornalista já transcreveu os principais documentos manuscritos, disponibilizados pela Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), em um total de 470 ligados à cidade –, a partir da digitalização de originais.
Entre eles, os Códigos de Posturas da Câmara Municipal de Tatuhy. Além das normas, os documentos tratam da criação de escolas, pedidos de auxílio e verbas, orçamento de obras e demarcação de divisas, entre outros.
Não menos importantes são os processos de manumissão dos escravos dos antigos senhores do município. Até a abolição, em 1888, a Câmara era quem, a partir de uma comissão, decidia quais deles seriam libertados a partir de um fundo de financiamento.
Parte dos recursos empregados nesse processo era enviada pelo governo da província; a outra parte do dinheiro tinha de ser oferecida pelos próprios escravos, quando esses tinham condições de comprar a liberdade. O valor total era entregue ao ex-proprietário como forma de indenização.
As transcrições possibilitaram, ainda, a descoberta de fatos inéditos, como o registro de dois desabamentos da Igreja Matriz (em anos distintos); o pedido de ajuda feito por professores das primeiras letras, que precisavam arcar com os custos de aluguéis das escolas (os prédios como atualmente os conhecemos não existiam); as disputas territoriais; a construção de novas estradas; e os movimentos surgidos para a edificação de prédios públicos, como o primeiro teatro da cidade, além das várias verbas para reformas da “cadêa” pública.
“Um documento interessantíssimo, que demonstra os desafios pelos quais Tatuí passou para se desenvolver, é um pedido do então vigário Demétrio Leopoldo Machado. O padre solicitou, em 1871, à Assembleia Provincial, que resolvesse uma questão de terras. Na época, a cidade não tinha autonomia para decidir como se daria a ocupação da área urbana e seus subúrbios”, antecipa Mota.
O jornalista compilou documentos raros, como o que contém a assinatura do “delegado de hygiene” da cidade, o médico sanitarista Francisco de Salles Gomes, no relatório sobre a epidemia de varíola em 1889; e transcreveu as primeiras cartas de sesmarias de terras concedidas a Jozeph de Campos Bicudo (dono de propriedades doadas aos padres jesuítas, posteriormente repassadas aos padres do Convento de Itu e, mais tarde, vendidas ao brigadeiro Jordão).
Mota disponibilizará ao público, a partir de 2026, em uma ampla exposição, as primeiras listas de habitantes de Tatuí, surgida como bairro de Itapetininga.
“Uma análise mais aprofundada desses documentos aponta que os primeiros habitantes já ocupavam o território itapetiningano desde 1820, dois anos depois da criação da paróquia de São João do Ipanema, mas um ano antes de o padre Gaspar Antonio Malheiros mudar o santo para Tatuhú”, antecipa o pesquisador.
A base documental para o processo de reconstrução histórica é composta por fontes convencionais (registros paroquiais e cartas de sesmarias), narrativas coloniais (crônicas e testemunhos de viagem) e fontes secundárias (livros e notas jornalísticas). “O objetivo é discutir o passado de uma cidade que precisa, em seu bicentenário, repensar suas práticas para o futuro”, afirma.
As buscas foram realizadas junto ao FamilySearch, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Biblioteca Nacional, Arquivo Histórico Ultramarino, Biblioteca Digital da Unesp (Universidade Estadual Paulista) mais os acervos do Internet Archive, da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), IGG (Instituto Geográfico e Geológico) de São Paulo, RAM (Revista de Administração Municipal), além de um sem número de livros e jornais raros para a compilação de dados.
Recentemente, o trabalho de buscas resultou no encontro de vídeos inéditos do município, captados entre os anos de 1946 e 1959. Os materiais são parte do acervo da Cinemateca Nacional, imortalizando desde a inauguração do Posto de Puericultura de Tatuí, viabilizado pela prefeita Chiquinha Rodrigues, que aparece discursando; o serviço de educação infantil de crianças de 2 a 7 anos, matriculadas no Jardim da Infância; o trabalho da Associação das Mães de Tatuí de ajuda à população carente; o acompanhamento da festa de São João, até o fabrico de farinha, no bairro dos Mirandas.
“Cheguei, assim, a registros até então desconhecidos, que possibilitam desmistificar alguns fatos e apurar com precisão outros tantos mais”, antecipa.
“Este especial é, portanto, o resultado de uma vida dedicada ao tema: de visitas, entrevistas, acesso a fontes restritas e noites voltadas à leitura e a transcrições de documentos antigos. Descobertas que, agora, ganham a forma escrita”, acentua.
Para a compreensão social da cidade, o pesquisador partiu dos maços de população, um dos registros mais remotos da formação de Tatuí – mas não o único. Esse conjunto de registros foi disponibilizado após inúmeras visitas “in loco” ao centro de pesquisas da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
“São os mapas que possibilitam, para além da memória, delimitar com precisão o perfil dos primeiros habitantes, conhecer a origem e a condição econômica. Sem falar que eles registraram por quais regiões a cidade se desenvolveu”, atesta Mota.
Além das primeiras cartas de sesmarias (documentos de concessão de lotes de terras), o especial traz dados retirados de documentos das Câmaras de Tatuí, Itapetininga e Botucatu, apresenta mapas topográficos e uma fotografia de 1877. A imagem está sendo reconstruída pelas mãos do artista plástico Mingo Jacob e também será exposta ao público, durante a exibição dos documentos raros.
Em sua estreia, a coluna tratará da primeira das muitas controvérsias envolvendo Tatuí, a começar por uma confusão entre datas e nomes na instalação da freguesia. A cada semana, novos fatos sobre o município serão apresentados.
A série se estenderá até agosto de 2026, com a missão de corrigir imprecisões, recuperar informações esquecidas e tornar a memória acessível a todos.