
Raul Vallerine
Assim como o sol derrete o gelo, a gentileza evapora mal-entendidos, desconfianças e hostilidade! (Albert Schweitzer)
Vivemos tempos em que desconfiar virou a regra. Num mundo saturado por contratos cheios de carimbos, assinaturas diante de tabeliões e notas de dinheiro analisadas contra a luz, mesmo as de vinte reais, a confiança parece ter perdido seu valor original.
Antigamente, bastava a palavra. Hoje, precisamos de provas. Mas o que explica essa mudança de comportamento social?
A filosofia pode nos ajudar a entender. Para David Hume, pensador escocês do século XVIII, nossas certezas são construídas pela repetição.
Ele usava um exemplo simples: embora não tenhamos garantias absolutas de que o Sol nascerá amanhã, confiamos que isso vai acontecer porque ele sempre nasceu até hoje.
Trata-se de um hábito mental: associamos causa e efeito com base em impressões sucessivas. É esse mesmo princípio que nos faz confiar — ou não em pessoas, produtos ou serviços.
Quando um restaurante nos atende bem várias vezes, esperamos o mesmo da próxima. Quando alguém cumpre o que promete, tende a ganhar nossa confiança. Mas, ao menor deslize, todo esse histórico pode ser apagado.
Ao longo do tempo, práticas como a venda fiado ou o famoso “fio do bigode” perderam espaço nos centros urbanos. O que antes era tratado como acordo selado pela honra virou item de museu.
E quando alguém ainda age assim, parece até exótico. A verdade é que nos acostumamos a esperar o pior como se o Sol, de repente, parasse de nascer.
A sociedade da desconfiança exige mecanismos de controle: câmeras, senhas, reconhecimento facial, autenticações infinitas.
Mas nenhum desses recursos substitui o que realmente importa: o compromisso individual com a coerência entre o que se promete e o que se entrega. Confiar é um ato construído com o tempo, mas pode ser desfeito em segundos.
No fundo, confiança e desconfiança andam lado a lado. Cabe a cada um de nós escolher qual delas vai guiar nossos próximos passos.
Por trás das pessoas desconfiadas estão a insegurança e os mecanismos das emoções que não deixam ser, que atrapalham e diminuem potenciais.
É possível que o comportamento delas nos cause surpresa, e que a ideia de que “quem não confia não é confiável” surja em nossa mente. No entanto, é preciso entender como às vezes é complicado confiar 100% nas pessoas ao nosso redor.
Nenhuma solidão é mais profunda e dolorosa do que a falta de confiança. Aqueles que sofrem com isso, aqueles que usam esse comportamento esquivo, rígido e sujeito à frieza não são exatamente pessoas felizes.
Muitos desses perfis são o resultado de uma profunda decepção, traição, negligência de uma infância desprovida de apego e afeto.
Quando a conexão com aqueles que amamos é quebrada de forma traumática, é difícil se reconectar esta bela palavra: confiança.
Nosso cérebro, como entidade social e basicamente programada para a conexão emocional, sofre quando não tem acesso à inter-relação, quando lhe faltam, em essência, laços fortes, geradores de espaços que nos fazem sentir cuidados, amados e valorizados.
Se isso falhar, se não percebermos esse reforço positivo, nossa insegurança se tornará nossa maior carcereira. Pessoas desconfiadas nem sempre são assim por escolha.
Além do mais, esse tipo de perfil vive constantemente sob o véu do medo. Porque se há algo que elas temem, é se machucarem novamente.
Portanto, não hesitam em erguer paredes ao seu redor e colocar detectores para que ninguém ultrapasse essa linha de autoproteção.
No fundo, confiança e desconfiança andam lado a lado. Cabe a cada um de nós escolher qual delas vai guiar nossos próximos passos.