Adultização é ‘negócio sujo’, não liberdade de expressão

Muito se fala em “liberdade de expressão”, embora quase nada se estude para saber o que de fato significa essa expressão. Na grande maioria das vezes, as manifestações servem ao propósito não da liberdade de se dizer o que se pensa, mas à impunidade de dizer mentiras – ou consumi-las sem moderação – melhor, sem regulamentação.

Só que a situação complica quando essa tal liberdade consiste em explorar crianças para ganhar dinheiro. É ou não é? Aí, os argumentos – não raro, rasteiros e sem contexto – se calam. Como agora, quando precisou um jovem youtuber vir a público para denunciar mais esse crime.

É aproveitar o momento, portanto, para, novamente, pedir por bom senso e leis efetivas para não só diferenciar liberdade de expressão, de um lado, e mentiras, discursos de ódio e oportunismo, de outro.

Neste sentido, vale observação às avaliações de André Charone, contador, professor universitário e mestre em negócios internacionais. Entre outros, também é autor do livro “A Verdade Sobre o Dinheiro: Lições de Finanças para o Seu Dia a Dia”. Diz ele:

“A recente denúncia do influenciador Felca sobre a ‘adultização’ de crianças nas redes sociais trouxe à tona um problema que vai muito além da moralidade. O vídeo apontou como conteúdos com apelo sexual precoce envolvendo menores circulam e se multiplicam nas plataformas digitais.

O choque coletivo diante do tema é compreensível. Mas, por trás da indignação, há uma engrenagem silenciosa e eficiente: o dinheiro. Estamos diante de um modelo de negócios que transforma a atenção em receita publicitária e que, consciente ou não, monetiza a exploração da infância.

O “algoritmo P”, como apelidado por Felca, é o ponto de partida. Plataformas como YouTube, TikTok e Instagram não vivem de mensalidades, mas de anúncios. O seu produto não é o aplicativo: é o tempo de atenção do usuário.

Quando um vídeo gera alto engajamento, muitos cliques, comentários e compartilhamentos, o sistema entende que aquilo deve ser promovido para mais pessoas. Esse ciclo é especialmente problemático quando o conteúdo desperta reações extremas, inclusive as de caráter sexual envolvendo menores.

Aqui está a questão central: o algoritmo não foi programado para avaliar moralmente o que exibe. Ele só mede resultado financeiro indireto: mais tempo de tela significa mais anúncios vendidos, mais dados coletados e mais receita para a empresa. Na prática, isso cria um incentivo perverso: conteúdos nocivos podem ser os mais rentáveis.

Vale lembrar que não é a primeira vez que isso acontece. Em 2019, o YouTube foi multado em US$ 170 milhões nos Estados Unidos por coletar dados de crianças sem consentimento e exibir anúncios direcionados. Houve promessas de mudanças, mas, passados alguns anos, novos formatos e novas plataformas reabriram brechas para exploração.

O que mudou foi a sofisticação: hoje, boa parte da monetização é indireta, via “economia do criador” e publicidade programática, o que torna mais difícil rastrear o fluxo de dinheiro e responsabilizar quem lucra com ele.

A economia dos criadores de conteúdo gera casos em que crianças se tornam verdadeiras máquinas de engajamento. Um canal infantil de médio porte pode faturar entre R$ 5.000 e R$ 50 mil por mês com publicidade, parcerias e venda de produtos, valores suficientes para transformar a exposição em fonte primária de renda familiar.

O problema é que, para manter ou aumentar essa receita, o conteúdo precisa competir num mar de vídeos igualmente chamativos. É aí que surgem escolhas arriscadas: roupas, falas ou movimentos que agradam ao algoritmo e atraem mais audiência, mas cruzam linhas perigosas.

O mais preocupante é que, muitas vezes, o próprio responsável legal é quem impulsiona esse conteúdo, sem perceber que está inserido num ciclo de exploração econômica.

A publicidade digital funciona como um leilão automatizado. Quando um usuário abre um vídeo, em milissegundos, diversos anunciantes competem por aquele espaço. O vencedor exibe seu anúncio sem, muitas vezes, saber o contexto completo do conteúdo.

Isso significa que empresas de segmentos respeitáveis de bancos a marcas de roupas, podem estar financiando vídeos que exploram a imagem infantil, sem qualquer ciência. O dano reputacional pode ser imediato caso isso venha à tona, mas a decisão de abandonar as redes não é simples: abrir mão de milhões de potenciais clientes não é algo que departamentos de marketing aceitam facilmente.

Enquanto empresas privadas colhem lucros, a conta final fica com a sociedade. As consequências psicológicas da adultização são amplamente documentadas: ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, baixa autoestima e dificuldades de socialização.

Esses impactos geram demanda por tratamento no sistema público de saúde, sobrecarregam políticas sociais e afetam o desempenho escolar, o que, a médio e longo prazo, influencia a produtividade e a economia nacional. É o caso clássico de lucro privado com custo socializado.

Um relatório da Unicef de 2023 já alertava: para cada dólar investido em prevenção à exploração infantil online, economizam-se até US$ 7 em custos sociais e de saúde no futuro. Mas, enquanto o retorno rápido do engajamento for maior do que o custo reputacional ou legal, o incentivo para mudança será mínimo.

O que poderia mudar o jogo?

1 – Reformulação do modelo de monetização: plataformas poderiam criar categorias de conteúdo infantil com monetização limitada, evitando que materiais de risco gerem receita proporcional ao engajamento;

2 – Auditorias independentes em publicidade digital: empresas terceirizadas poderiam certificar que campanhas publicitárias não financiem conteúdos nocivos, criando responsabilização conjunta de plataformas e anunciantes;

3 – Transparência algorítmica: forçar que plataformas revelem como seus sistemas tratam conteúdos envolvendo menores e quais medidas são tomadas para limitar riscos; e

4 – Educação digital para pais e responsáveis: não basta apenas vigiar: é preciso entender os mecanismos financeiros por trás da exposição, para que famílias não sejam seduzidas por ganhos rápidos que comprometem o futuro da criança.

Enquanto a discussão sobre a adultização ficar restrita à esfera moral, veremos soluções paliativas. É preciso reconhecer que existe uma economia bem estruturada e lucrativa por trás da exploração infantil online.

O vídeo de Felca pode ter sido o gatilho para um debate público, mas, para que haja mudança real, será necessário ir além das hashtags. É preciso atacar a raiz: os incentivos financeiros que mantêm esse mercado vivo.

Proteger a infância não é apenas um dever ético. É também uma estratégia inteligente de gestão econômica e social.”

E por aí está explicado o maior problema, inclusive, demonstrando porque incontáveis pessoas estão servindo de rebanho digital para engordar as big techs quando não param de consumir e propagar fake news, mesmo se levadas a pensar, equivocadamente, que estão a defender a tal liberdade de expressão.

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